Mar negro - Parte VII

Sinopse: ‘Mar Negro’ é a sequência de experiências multidimensionais narradas em primeira e terceira pessoa por um personagem que volta e meia é levado para conhecer e viver outras dimensões do universo. Apesar da dificuldade em descrever cada um dos momentos que viveu com palavras, pois a linguagem humana é limitada, o personagem consegue aos poucos apresentar as experiências fora das dimensões tradicionais. Mas o que seria essa experiência, o que ela traz de transformação efetiva para vida dele? Aos poucos o Mar Negro vai se revelando em mistérios e existencialismos que são inerentes ao cosmo. 
Gênero: ficção


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Parte II
Parte III
Parte IV
Parte V
Parte VI 

VII

A sensação de desconexão e conexão toda vez que ouso mergulhar no mar negro é uma das mais transformadoras que vislumbrei um dia ser capaz de sentir. A leveza de existir e não existir, de sentir e não sentir, de andar e estar parado; o combo de sensações opostas me hipnotizam e me colocam em um lugar quase de servidão e desejo de estar e ser o próprio mar negro. É deliciosamente assustador.

Descolei mais uma vez. Não fora em um dia qualquer. Era sábado, 29 de janeiro. Um dia tipicamente sem esperanças e de cansaço extremo, que curiosamente descambou em um despertar para a energia de ação. Precisava reagir, não mais me entregar ao cansaço. Não mais me arrepender ou questionar por existir. Não mais sentir culpa por coisas que sequer tive escolha ou controle. Enquanto voltava a sorrir para mim mesmo, a alegria aos poucos ressurgia e a esperança de que tudo poderia mudar para melhor, me deixou encorajado a tentar, mais uma vez, mudar os cursos da própria vida.

Deitei renovado, entusiasmado. Um desfecho completamente distinto de um dia tipicamente falido e sem expectativas. Era a intuição tentando me salvar, acalentar e me fazer enxergar que de um horizonte de desespero pode haver fuga para algo melhor. A intuição sempre sabe quando é o melhor momento para proporcionar um descolamento. Esse era um dia para, não me pergunte o porquê.

O que estava claro em minha consciência é que se tento eu mesmo espontaneamente acessar ao mar negro, essa tentativa é sempre frustrada. Não tenho controle. Apenas o meu eu superior, o que aqui estou chamando de intuição, quem sabe o tempo e o momento exato para que tudo isso ocorra e me restaure com alguma experiência capaz de ampliar os meus sentidos da minha existência.

Flutuava para cima, em uma velocidade assustadoramente rápida como a luz que instantaneamente me colocava em uma espécie de pista cósmica, cuja navegação fluía sem qualquer esforço em direção a lugares impossíveis de serem reconhecidos. Quando não se ocupa um corpo, não se sente às limitações do corpo. Não existe escalas de tamanho e percepções. Não ocupar um corpo significa ser parte de algo que tem as próprias leis de existência e de manifestação de consciências. Isso me permitia ver o que seria impossível identificar ocupando um corpo humano, em um espaço em que o corpo seria menor que o mais microscópico ser vivo. Quando nos libertamos das limitações que são impostar por existir em um corpo, somos capazes de nos conectar a tudo que é e existe. Tudo àquilo que somos parte.

Uma explosão de cores, elas se deformavam e formavam como uma supernova de muita energia e brilho. Era hipnotizante. Havia estrelas de todos os tipos, cores e tons. Formatos geográficos curiosos impossíveis para o universo que já foi descoberto pelo homem. Losangos, losangos sobrepostos, pontos de luz, estrelas ocas, sistemas em direções e órbitas improváveis. Tudo estava alinhado e perfeitamente sincrônico ao que, quem sabe, fosse uma galáxia.

Viajei por cada um deles, ainda que rápido. Uma viagem intensa e perturbadora aguçou em mim a impressão que a existência é infinitamente mais complexa do que qualquer mente humana é capaz de vislumbrar. Deveria temer a esse pedaço e experiência desconhecidos? Talvez sim. Mas no instante em que tudo aconteceu não houve medo, não houve qualquer sentimento terráqueo. A sensação de transmutar e de existir e não existir é um perfeito equilíbrio para isso que acreditamos ser o nosso espírito ou alma. Tudo é agora e somos um pedaço de tempo que passa, perambula, mas nunca deixa de existir.
 
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O movimento seguia pelo cosmo entre as estrelas de formatos desconhecidos ao sistema que os humanos foram capazes de descobrir até então. Os tons e cores também eram estranhos, não mapeados até hoje. E, num impulso de seguir em frente, em movimento acelerado, tudo escureceu-se. Percebi que agora já não era um ser sem forma e tinha um corpo de carne e osso. O sangue corria pelos vasos sanguíneos e meu coração acelerava como se a vida estivesse recomeçando.

O local era escuro. As luzes se acenderam e no clarear do ambiente, irradiou uma luz vermelha que logo se tornou branca. Identifiquei que estava em um apartamento que nunca antes tinha estado. Era um lugar novo, como tudo. Estranhamente, sabia de quem era aquele apartamento. Senti um arrepio estranho, não sei se tenebroso ou de excitação. Iniciei a minha procura. Abri e fechei várias portas em busca de quem era o dono deste imóvel. Porta aberta, porta fechada. Portas amarelas, de cor amadeirada e acabamento rústico. Natural.

Eis que me aproximo da última porta, a única que não havia sido aberta ainda e pude estranhamente sentir a presença Dele de forma vívida e no equilíbrio que se assemelha a experiência de estar no mar negro. Ele estava ali, do outro lado da porta, talvez em uma cadeira de couro sentado, esperando pacientemente a minha entrada e os meus questionamentos.

Minhas mãos tocam a maçaneta dourada. Sinto um fio de medo e entusiasmo simultaneamente. Tudo é agora. Existência e não existência. Sentimentos e apatia. O equilíbrio perfeito entre algo que é e não. Minhas mãos deslizam, correm para um lado e para o outro enquanto um filme passa pela minha cabeça.

Imaginei que teria o maior de todos os encontros. Que encontraria as respostas para todas as minhas dúvidas e aflições. Tudo passaria a fazer sentido e a vida talvez pudesse enfim ter um propósito. No entanto, o peso da consciência de não mais mergulhar e nadar no rio da ignorância é algo que realmente me transformaria. Estaria eu pronto para encarar o mundo em sua complexidade e infinidade? Meu coração acelerou. Fechei meus olhos e tirei as minhas mãos da maçaneta. Saí do corredor de portas atônito, guiado pelo sentimento de medo e temor. Eu estava diante do Criador. Contudo, para esse encontro eu não estava preparado e talvez nunca esteja.

Desci as escadas num pico único, sem dimensionar quantos andares existiam ali naquele prédio. Ouvi latidos ao fundo e os meus passos sendo dados. Enquanto descia, refletia em minhas próprias crises existenciais e em questões que imaginei já ter superado e seguido em frente. Saí do ambiente e não sabia onde estava. Era uma cidade que não conhecia. Isso tudo ainda é parte da experiência do mar negro? Onde estou? Vejo humanos que não são como os humanos terráqueos. Quem são eles e onde estão?

Ouço um zumbido nos ouvidos e minha visão está um pouco turva agora. É uma neblina que me desnorteia e tira meus sentidos instantaneamente. Perambulo e cambaleio pelas ruas deste lugar desconhecido e reflito sobre o que abandonei naquele prédio. Ganhei e aparentemente perdi a chance de ter respostas para tudo que existe e não existe. Minha garganta seca engolia o sentimento estranho de que o mar negro me deu uma experiência que sempre quis, mas nunca fui capaz de mensurar o que ela significaria ou me perturbaria. Eu não estava pronto para mergulhar em um rio e sair como outra pessoa.

Perdi a chance, será que um dia serei presenteado outra vez?

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Um conceito dos humanos que me fascina é o de 'memória'. Por eles se verem como espécie limitada, que é datada para o encontro com o fim, eles tentam deixar marcas de existência no planeta em todo tipo de expressão. Criaram arte, ciência, filosofia, arquitetura, absolutamente tudo que pudesse ser até indestrutível. Ao lembrarem de sua própria existência, por meio dessas criações, recriam o tempo com outras perspectivas e complexidade. Em paralelo, se justificam merecedores por meio do futuro e presente que constroem.

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