Mar negro - Parte VII

Sinopse: Mar Negro é uma imersão em experiências multidimensionais, narrada de forma envolvente e alternada entre a primeira e a terceira pessoa. O protagonista é subitamente capturado pelo desconhecido e levado a atravessar os limites da realidade, explorando outras dimensões do universo. À medida que viaja entre esses mundos, sua compreensão humana de vida, morte e existência é desafiada e fragmentada, tornando cada vez mais difícil acessar os segredos ocultos no abismo do Mar Negro. Em cada nova jornada, ele descobre fragmentos de uma verdade maior e se depara com formas de existência que transcendem o corpo e a mente. No coração desse cosmo infinito, ele busca não apenas compreender, mas também se fundir com o mistério primordial — uma verdade cósmica que altera para sempre a noção de ser.
Gênero: ficção científica metafísica, ficção científica surrealista 

| foto: oticacotidiana 

Leia também:
Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV
Parte V
ATENÇÃO: Este conto deu origem a um romance de ficção científica lançado em 2024, que explora o universo místico e os mistérios das experiências multimensionais. O livro Mar Negro apresenta uma história única, independente do conto, em um cenário próprio. Descubra todos os detalhes sobre o livro aqui.


VII

Cada vez que mergulho no mar negro, uma sensação de desconexão e conexão simultâneas toma conta de mim, é algo tão transformador que é difícil acreditar que um dia seria capaz de experimentar. A leveza de existir e não existir, de sentir e não sentir, de andar e estar parado; o combo de sensações opostas me hipnotiza e me colocam em um lugar quase de servidão e desejo de estar e ser o próprio mar negro. É deliciosamente assustador.

Descolei mais uma vez. Não fora em um dia qualquer. Era sábado, 29 de janeiro. Um dia tipicamente sem esperanças e de cansaço extremo, que curiosamente descambou em um despertar para a energia de ação. Precisava reagir, não mais me entregar a passividade por só existir, dar fim ao sentimento de culpa por questionar estar vivo e pensar na minha própria vida, sobretudo das escolhas que não tive controle. Enquanto voltava a sorrir para mim mesmo, a alegria aos poucos ressurgia e a esperança de que tudo poderia mudar para melhor, me deixou encorajado a tentar, mais uma vez, mudar os rumos da minha própria vida.

Deitei renovado, entusiasmado. Um desfecho completamente distinto de um dia tipicamente falido e sem expectativas. Era a intuição tentando me salvar, acalentar e me fazer enxergar que de um horizonte de desespero pode haver fuga para algo melhor. A intuição sempre sabe quando é o melhor momento para proporcionar um descolamento. Esse era um dia para, não sei o porquê.

O que estava claro em minha consciência é que se tento eu mesmo espontaneamente acessar o mar negro, essa tentativa é sempre frustrada. Não tenho controle. Apenas o meu eu superior, o que aqui estou chamando de intuição, quem sabe o tempo e o momento exato para que tudo isso ocorra e me restaure com alguma experiência capaz de ampliar os sentidos da minha existência.

Flutuava para cima, em uma velocidade assustadoramente rápida como a luz que instantaneamente me colocava em uma espécie de pista cósmica, cuja navegação fluía sem qualquer esforço em direção a lugares impossíveis de serem reconhecidos. Quando não se ocupa um corpo, não se sente às limitações dele. Não existem escalas de tamanho e percepções. Não ocupar um corpo significa ser parte de algo que tem as próprias leis de existência e de manifestação de consciências. Isso me permitia ver o que seria impossível identificar ocupando um corpo humano, em um espaço em que o corpo seria menor que o mais microscópico ser vivo. Quando nos libertamos das limitações que são impostar por existir em um corpo, somos capazes de nos conectar a tudo que é e existe. Tudo àquilo que somos parte.

Uma explosão de cores, elas se deformavam e formavam como uma supernova de muita energia e brilho. Era hipnotizante. Havia estrelas de todos os tipos, cores e tons. Formatos geográficos curiosos impossíveis para o universo que já foi descoberto pelo homem. Rochas alinhadas em formato de losangos, losangos sobrepostos, pontos de luz, estrelas ocas, sistemas em direções e órbitas improváveis. Tudo estava alinhado e perfeitamente sincrônico ao que, quem sabe, fosse uma galáxia.

Viajei por cada um deles, ainda que rápido. Uma viagem intensa e perturbadora aguçou em mim a impressão que a existência é infinitamente mais complexa do que qualquer mente humana é capaz de vislumbrar. Deveria temer a esse pedaço e experiência desconhecidos? Talvez sim. Mas no instante em que tudo aconteceu não houve medo, não houve qualquer sentimento terráqueo. A sensação de transmutar e de existir e não existir é um perfeito equilíbrio para isso que acreditamos ser o nosso espírito ou alma. Tudo é agora e somos um pedaço de tempo que passa, perambula, mas nunca deixa de existir.

| foto: pixabay

O movimento seguia pelo cosmo entre as estrelas de formatos desconhecidos ao sistema que os humanos foram capazes de descobrir. Os tons e cores também eram estranhos, não mapeados até hoje. E, num impulso de seguir em frente, em movimento acelerado, tudo escureceu. Percebi que agora já não era um ser sem forma e tinha um corpo de carne e osso. Sentia o sangue pulsando nas veias, o coração acelerado em um recomeço.

Eu nasci. Ou renasci?

O local era escuro. As luzes se acenderam gradativamente e no clarear do ambiente, irradiou uma luz vermelha que logo se tornou branca. Identifiquei que estava em um apartamento que nunca antes tinha estado. Era um lugar novo, como tudo. Estranhamente, sabia de quem era aquele apartamento. Senti um arrepio estranho, não sei se tenebroso ou de excitação. Iniciei a minha busca. Abri e fechei várias portas à procura de quem era o dono deste imóvel. Entrei e saí de quartos, cruzando portas uma após outra. Portas amarelas, de cor amadeirada e acabamento rústico. Cru e natural.

Eis que me aproximo da última porta, a única que não havia sido aberta ainda e pude estranhamente sentir a presença Dele de forma vívida e no equilíbrio que se assemelha a experiência de estar no mar negro. Ele estava ali, do outro lado da porta, talvez em uma cadeira de couro sentado, esperando pacientemente a minha entrada e os meus questionamentos.

Minhas mãos tocam a maçaneta dourada. Sinto um fio de medo e entusiasmo simultaneamente. Tudo é agora. Materialidade e ausência. Sentimentos e apatia. O equilíbrio perfeito entre algo que é e não. Minhas mãos deslizam, correm para um lado e para o outro enquanto um filme passa pela minha cabeça. Todas as experiências até aqui: a cabana, o cinzeiro, o grilo, a moça dos cabelos brancos, o mundo cinzento, tudo pulsa.

Imaginei que teria o maior de todos os encontros. Que ali, do outro lado da porta, estavam todas as respostas para as minhas dúvidas, aflições e fracassos. Ele saberia os porquês ocultos, os caminhos, as justificativas para as misérias e as angústias humanas, até para aquelas que eu nunca soube formular, até para aquelas que só o meu subconsciente é capaz de perceber. O propósito, enfim, revelado como um segredo partilhado entre Criador e a sua ínfima criação. A simples ideia desse conhecimento me puxava para a maçaneta, mas o que me esperava do outro lado? E, acima de tudo, será que eu estava preparado para saber?

Se cheguei até aqui, é provável que sim. Mas e se tudo foi um acidente? E se eu não devesse estar aqui? Senti o peso de uma verdade que começava a surgir, opressora. Pressionei minha mão contra a maçaneta. E se a vida nunca pudesse voltar ao que era? E se algo se quebrar e não for possível colar? E se a realidade experimentada até aqui for uma folha de papel que nunca seria capaz de voltar ao seu estado natural depois de ser amassada ou usada? Fui consumido por um medo de perder aquela ignorância segura, aquele escudo de dúvida que, de certa forma, me mantinha inteiro, me mantinha no mundo das aparências. O mundo, o verdadeiro mundo, despido de ilusões, talvez fosse avassalador demais. Seria eu capaz de carregar esse fardo? Sequer me sinto capaz de suportar meus próprios dilemas.

Respirei fundo, o coração acelerado. Tudo em mim grita para não abrir aquela porta, para preservar um pedaço de si no véu da dúvida. Mas, ao mesmo tempo, uma voz persistente e sutil insistia: "Vá, abra. Chegou até aqui por algum motivo, faça jus e reclame a sua herança”. Fechei os olhos e segurei a maçaneta, hesitante, deixando que uma corrente de pavor me invadisse.

Eu a soltei. O impacto daquele gesto foi súbito, um alívio intenso e inexplicável, como se, ao recuar, me salvasse de um peso irreversível. Eu não estava pronto. Talvez nunca estaria. Minhas pernas se moveram sozinhas, guiando-me para fora daquele corredor, enquanto uma sensação de vazio e perda queimava em meu peito.

Desci as escadas em formato de caracol num pico único, sem dimensionar quantos andares existiam ali naquele prédio. Ouvi latidos ao fundo e dos meus passos sendo materializados na madeira do chão. Enquanto descia, minhas crises existenciais retornavam, me deixando inquieto sobre tudo o que vivenciara. O que eu acreditei superar, então, foi uma mera ilusão?

Saí do ambiente e não sabia onde estava. Era uma cidade que não conhecia. Isso tudo ainda é parte da experiência do mar negro? Onde estou? Vejo humanos que não são como os humanos terráqueos. Eles têm algo no olhar que me perturba, porque toca em um lugar que não me sinto seguro. Quem são eles e onde estão?

Ouço um zumbido nos ouvidos e minha visão está um pouco turva agora. É uma neblina que me desnorteia e tira meus sentidos instantaneamente. Perambulo pelas ruas deste lugar desconhecido e reflito sobre o que abandonei naquele prédio. Ganhei e aparentemente perdi a chance de ter respostas para tudo que existe e não existe, para tudo que vem acontecendo comigo desde a cabana no mar escuro. Minha garganta seca engolia o sentimento estranho de que o mar negro me deu uma experiência que sempre quis, mas nunca fui capaz de mensurar o que ela significaria ou me perturbaria. Eu não estava pronto para mergulhar em um rio e sair como outra pessoa. Perdi a chance, mas será que um dia serei presenteado outra vez?

***

Um conceito dos humanos que me fascina é o de 'memória'. Por eles se verem como espécie limitada, que é datada para o encontro com o fim, eles tentam deixar marcas de existência no planeta em todo tipo de expressão. Criaram arte, ciência, filosofia, arquitetura, absolutamente tudo que pudesse até ser indestrutível. Ao lembrarem de sua própria existência, por meio dessas criações, recriam o tempo com outras perspectivas e complexidade. Em paralelo, se justificam merecedores por meio do futuro e presente que constroem. Eles são merecedores da vida? São merecedores de serem inquilinos de um planeta que eles devoram sem pensar nos seus semelhantes? Para que serve a memória, se não são capazes de se comportar como seres eternos?

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