Mar negro - Parte VI


Sinopse: ‘Mar Negro’ é a sequência de experiências multidimensionais narradas por um personagem que volta e meia é levado para conhecer e viver outras dimensões do universo. Apesar da dificuldade em descrever cada um dos momentos que viveu com palavras, o personagem consegue aos poucos apresentar o que aconteceu, assim como os passos para repetir as experiências fora das dimensões tradicionais.

Gênero: ficção

| foto original: pixabay


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Parte V


VI

Um mundo preto e branco, ou, melhor dizendo, cinzento e de poucas cores. O aspecto gélido do lugar tornava distantes e impossíveis de se manifestarem aqui àquelas cores conhecidas de outros lugares. Era um frio intenso, sabia que era pelo entorno, mas era suportável.

O oceano era mais do que um organismo vivo e seguia seus próprios movimentos em um ir e vir infinito de leveza e beleza pela simplicidade. O mar era diferente daquele que conhecia. Não era azul, era verdadeiramente incolor e gelado, um gelo líquido que se esfumaçava toda vez que o líquido se movia para frente e para trás. Numa constante. Respira, inspira... A areia era fofa o bastante para parecer pequenos pontos de borracha, macios e amenos. Fincar os pés no chão é uma experiência relaxante e de certa forma me conforta.

Agora devia ser mais ou menos umas 15h, de quantas em um dia aqui? A estrela grande e brilhante no céu era como o sol terrestre, só que avermelhado. Ele coloria o céu meio rosa-cinzento de nuvens brancas e espaças. Aqui é um lugar verdadeiramente frio, presumi. Mas como pode ser tão frio e eu não sentir nada? Existe vida ou estou vivo? O único som aqui é o do movimento. Que tipo de vida parece existir aqui? Sentado na areia macia e emborrachada nada desse clima hostil parecia me abalar, sentia até algo quente em mim. Provavelmente o sopro vital. Teria meu eu se adaptado a essa realidade tão distante da minha?

Algo estava ainda mais distinto: a noção do tempo. O tempo aqui parecia outro. Mais lento, mais complexificado e eu sentia que cada segundo aqui poderia facilmente ser como uma hora na Terra. Não me pergunte como percebi isso, porque não sei explicar ao certo nem mesmo o tempo regular. Era lento, relaxante e me permitia viajar em pensamentos infinitos, tudo ao mesmo tempo.

Os raios solares penetravam em mim e a paz que sentia logo me fez adormecer em um sono pesado. Deitei, fechei os olhos. Sonhei com a vida que vivia na Terra. O meu trabalho, família, amigos, tudo voltara a ser conhecido e, embora estivesse distante, parecia que a distância se encurtava. Quando era criança e ficava um tempo fora, na casa dos meus tios ou amigos e sentia saudades de casa, sonhava com ela. E tudo parecia fácil de ser acesso. Da casa da minha tia, estava no meu quarto, como se uma parede unisse tudo isso. Pegar um ônibus para chegar em casa não se fazia necessário, bastava atravessar por uma camada fina, entre as mil e tantas enfileiradas em uma espiral. Estava acontecendo tudo isso de novo, como antes.

No meio desse devaneio presumi que talvez a realidade como conhecemos não seja como a descrevemos. Somos vibração. Tudo ao nosso redor é vibração. É energia, é impulso elétrico. Desta maneira, a realidade então seria um conjunto de camadas sobrepostas uma na outra nessas fileiras, em espiral onde tudo acontece ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Mas não existe esse espaço físico, porque a energia percorre e se transforma o tempo inteiro antes de virar matéria. Nesse universo, a energia não precisa de matéria e ela pode simular a matéria por impulsos também elétricos.

Enfileirados vi versões minhas e outras que poderiam ser meu eu existindo ao mesmo tempo. Não existe linha do tempo, não existe começo, fim e nem meio. É um grande fio espiral interligado e cada uma de suas pontas interferem nas outras. Então poderia usar essa brecha para voltar para casa? Se tudo é uma vibração, poderia me sintonizar e voltar para aquela realidade em que estava acostumado? Mas aqui, nesse mundo cinzento existe a paz do tamanho da minha alma e me faz sentir que não faz diferença alguma voltar, porque se estou aqui, também estou lá, coexistindo e co-criando comigo mesmo, inconscientemente.

Tudo vibra. Vibra sim.

Vibrações não se findam ou deixam de existir. Acho que agora tenho capacidade para começar a entender o que aqueles seres querem dizer todas às vezes que repetem que tudo existe e não existe ao mesmo tempo. Que tudo é individual e coletivo. Saber disso me traz paz. Porque toda a noção de vida humana se desmancha e se converte apenas em mais um capítulo da existência.

- ‘Para que a pressa?’, é a primeira coisa que se pergunta quando descobre isso, não é? - Perguntou-lhe um dos seres desse mundo cinzento ao me acordar do sono profundo.

- Como você sabe o que estava sonhando agora? Como isso é possível?

- Não existe segredo quando você divide conosco as suas angústias e conclusões. Tome um pouco desse líquido. Vai te ajudar a se recuperar um pouco desse banho de luz vermelha que absorveu enquanto estava deitado.

Bebo o líquido que tem não tem sabor de nada conhecido, mas que refresca meu corpo inteiro. Pareço melhor agora. Agradeço.

- Então... lhe perguntei sobre o sentimento de não existir razão para ter pressa quando se descobre que a espiral vai e vem infinitamente, não importa o que façamos, certo?

- Sim, me apequena. A vida inteira na Terra me afundava em preocupações. O emprego, os estudos, os relacionamentos, a família. Tudo era sempre acelerado e temia o que não conhecia, tinha medo de morrer e não conseguir deixar a minha marca e legado no planeta. Que audácia minha. Uma grande besteira isso tudo.

- Uma das vantagens de perceber que tudo é vibração é que você pode se encaixar em qualquer uma que seja. Você pode ocupar diferentes lugares e realidades sem que isso indique começo meio ou fim. As pontas das espirais estão ligadas uma na outra. Não há porque sofrer com perdas inesperadas, tudo apenas existe e nada desaparece por inteiro. A espiral reúne tudo e todas as possibilidades. Num ir e vir infinito: vida, morte, começo, recomeço, passado, presente, futuro, transformação e movimento.

Finalmente levanto a cabeça e passo a observar quem é esse ser que me acolheu e despertou do sono relaxante. Sua pele brilhava, parecia como aquelas bonecas de plástico da Terra. Sua aparência não me lembrava 100% a dos humanos, mas existia algo nele que me cativava como é com humanos. Éramos pequeninos no meio da faixa de areia e do mar gelado. Seu corpo era meio largo e um tanto baixo, com uma cabeça, tronco e membros inferiores e superiores, parecia ter algo como asas em suas costas. Algo estava atrás dele escondido, mas não sei o que é. Seus olhos eram fundos, escuros e grandes e não havia nariz em seu rosto. Sua boca era um traço fino e linear. Sua cabeça brilhava uma luz azul e anil onde nos humanos naturalmente seria coberto por cabelos. Dentro dessa luz anil existia outros milhares de cores e brilhos mais amenos. Uma beleza fascinante e hipnotizadora. Meu espírito se aqueceu de amor e sentimentos bons quando o vi. Teria eu a mesma aparência deste ser agora?

- Como você sabe de tudo isso? Como posso voltar para casa?

- Qualquer pessoa pode saber, não há nada de segredo nisso que estou lhe relembrando. Repito: neste mundo não há armadilhas e nem nos outros mundos e realidades há mentiras e segredos. Você só precisa estar na vibração certa para receber as mensagens que é capaz de entender. É possível ir para onde quiser, inclusive para sua casa. Mas não se preocupe, você está lá agora também. É normal não lembrar que se está vivendo tantas outras vidas e realidades simultâneas.

E então me dou conta de que ele estava certo. Eu estou lá, estou aqui e estou em outros lugares. De fato, tudo é vibração. Sem meios, fins, pausas. Procuro formas de tentar viver alguma coisa só, mas não consigo. Acho que fiquei preso nessa zona entre realidades e estou sem saber como voltar para casa.

Bebo mais um pouco do líquido que o ser especial me deu e pergunto seu nome.

- Não tenho nome, mas se quiser um posso criar agora: Truythus.

- Porque esse nome?

- Não sei, me veio agora na consciência.

Seus olhos esmaecem e se tornam ternos quando ele me responde. Percebo que essa interação é como um sorriso de acolhimento, de carinho.

- Acho que quero sair daqui. O que há aqui além daqui?

- Há tantas outras coisas para você descobrir aqui, você sabe. Sem pressa, você poderá aproveitar cada pedacinho daqui.

Enquanto Truythus me responde paro para observar a estrela vermelha que está brilhando e refletindo no mar gelado esfumaçado. São segundos tão lentos e intensos que o fato de ter encarado essa estrela me traz de volta àquela escuridão de outrora. Paro de enxergar. Noto que estou sozinho novamente. Agora sem medo e em paz, mas sem ter qualquer noção do que me espera a partir daqui.



EM ALTA...