'A cor dessa cidade sou eu'

um recorte racializado das minhas vivências em Salvador

Bruno Bispo*
redacao@oticacotidiana.com

Estamos vivendo, nos últimos dias, uma efervescência nos debates sobre raça e racismo no cenário mundial, após acontecimentos como o assassinato do menino João Vitor, 14 anos, dentro da sua própria casa, durante ação policial e, principalmente, o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, que foi preso por suspeita de usar cédulas falsas numa compra em supermercado e asfixiado pelo policial branco que o deteve – com o joelho sobre o seu pescoço – por mais de 8 minutos. Este evento desencadeou uma série de protestos e debates sobre racismo no mundo inteiro.

Há muito tempo reverbero eventos que aconteceram comigo em Salvador, que é dita a cidade mais negra fora do continente africano. De fato, segundo dados do IBGE de 2017, 81,2% da população soteropolitana se declara preta ou parda, quantitativo muito superior à média nacional (55,4%). Tais eventos não se constituem necessariamente episódios de injúria ou discriminação raciais, mas coisas sutis do cotidiano que, certamente, por muito tempo passaram despercebidas. 

Qual a cor dessa cidade, pret@? | foto: pixabay

Em Salvador, em qualquer dia nublado desses de julho, estava caminhando na rua com algumas pessoas a caminho de um restaurante. Como eu estava desarrumado e com muito sono, brinquei que, se me comparassem a elas, iam me achar um ''trombadinha, mendigo'', algo do tipo. E aí ouvi: "Não, negro bonito, com black, com calça estampada (Esquadrão da Moda, corre aqui!), vão pensar que é artista".

Na mesma semana, na mesma cidade, saindo de um shopping às 1h da manhã, pedi um carro por aplicativo com um amigo branco. Entramos no carro, motorista bastante simpático e solícito, tudo nos conformes. Então começa: "Rapaz, fui me aproximando do shopping e reduzi a velocidade, né... parei pra ver quem é que vinha em direção ao carro. Quando vi um moleque branco, loiro, e um outro negro mas estiloso, com black, ‘pinta’, fiquei mais tranquilo. Se viessem uns 3 caras com 'cara de pivete', arrastava o carro na hora. A gente não sabe, né? Hoje em dia, a gente fica com medo, alguns amigos meus já foram assaltados por aqui...". ...

Mas, fiquei a pensar, então, "qual o lugar do negro na sociedade?" Parece pergunta clichê, sim, mas me pergunto - e vos pergunto - por ser negro eu serei automaticamente pensado como "pivete" ou artista? Ou mesmo como “mendigo”, como eu mesmo me pintei? (sim, não estou imune a ter pensamentos racistas ou até tecer comentários racistas). Em qual estereótipo eu, negro, preciso me encaixar? 

‘Green Book’ conta uma história de amizade entre um rico e renomado pianista de música clássica e o seu recém-contratado segurança e motorista. Sim, e daí? Apesar de inúmeras críticas favoráveis e 5 Oscars, incluindo melhor filme, o longa não extrapola alguns estereótipos, como o do negro bem-sucedido ‘metido a besta’ e, principalmente, do mito do “Branco Salvador”. | foto: Universal Pictures / Reprodução

Por que recebi tantos olhares surpresos quando descobrem que estudo medicina? Aqui entram, claro, outros quinhentos relacionados à própria medicina “tradicional brasileira”, a elementos de racismo estrutural que mantêm a sociedade organizada pela desigualdade racial, e do próprio racismo científico, que por muitos séculos justificou e legitimou com base em (pseudo) evidências científicas, como características genéticas e anatômicas, a inferioridade e propensão a crimes de pessoas da raça negra.

No entanto, sempre questionei, por exemplo, o porquê de o meu crachá ser conferido todos os dias nos hospitais onde tinha aulas, a despeito os meus colegas brancos. Certo dia cheguei a ouvir de uma funcionária no centro cirúrgico do hospital: “quem disse que você pode ficar aqui?”, alegando que meu cabelo escapava da touca cirúrgica. De fato, devo compartilhar com outros pretos e pretas que, em ambientes majoritariamente brancos, se perguntam (in)conscientemente: “eu posso estar aqui?”.

O que quero dizer é que em determinado dia, local ou circunstância, ou posso não ESTAR "estiloso" ou "bonito", ou ser considerado como tal; posso não ESTAR/SER estudante de qualquer coisa ou TER algum bem material, mas SEREI SEMPRE NEGRO. E então não poderei pagar um transporte para casa.

Exemplo disso é o recente caso do jovem Gabriel, que saiu de casa durante a pandemia para sacar o dinheiro do seu auxílio emergencial e foi preso por roubo de veículo. A polícia alega que ele se encaixava no perfil físico do suspeito. Detalhe: Gabriel nunca aprendera a dirigir. Em depoimento, ele afirmou nunca ter visto a vítima, e ainda assim ele teve o celular apreendido e fora mantido preso.

Manifestante carrega cartaz escrito “vidas negras importam”. Mas será que importam mesmo? Em quê, para além da fala, podemos atuar na luta antirracista? | foto: pixabay

Seria até ingênuo da minha parte acreditar que viver numa cidade como Salvador me pouparia de vivenciar na pele questões raciais no cotidiano político, econômico, social e até mesmo afetivo. E é aí que, pra mim, fica claro quando Silvio Almeida diz que o racismo é estrutural na nossa sociedade, porque ele extrapola o sentido subjetivo/individual/moral ou institucional ao qual geralmente o atrelamos. “O buraco é mais embaixo”: é simplesmente impossível pensar política, economia, ideologia ou sociedade sem racismo.

Inclusive, um discurso muito comum que associa o racismo no Brasil contemporâneo aos injustos processos de escravismo e abolicionismo, sem querer dar descrédito ao fundamental impacto da ausência de políticas de reparação social, nos dá uma visão limitada e simplista do assunto. Muito antes disso, um elemento indispensável para que, um dia na história da humanidade, um grupo de pessoas pudesse explorar, torturar, expropriar e assassinar um outro grupo foi justamente a crença na superioridade de um grupo (raça) e inferioridade do outro.

Acho importante, ainda, ao falar sobre esse tema, salientar o fato de que o racismo estrutural ainda é racismo. Assim, não dá pra ter um discurso, pensamento ou comportamento racista e depois justificar que “foi mal, nem percebi, é porque o racismo é sistêmico, né?” como se ele fosse, por si só, uma estrutura ou uma entidade onipresente e onipotente, acima de toda a nossa capacidade intelectual, empatia ou bom senso.

Aos que chegaram a leitura até aqui, proponho que racializemos absolutamente tudo. Parece exagerado, mas nos fará ponderar qual influência da raça – seja da branquitude, como um lugar de privilégios, ou da negritude como um lugar de desvantagens históricas – em cada setor da nossa vida e em cada debate cotidiano. E, quem sabe a partir daí, possamos enxergar quais os impactos de questões raciais no nosso dia-a-dia e identificar, para além da fala, em que exatamente podemos atuar na luta antirracista.


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Bruno Bispo
Preto, baiano, filho de classe trabalhadora. Amante de livros, cerveja e sorrisos.
Estudante de medicina, professor, 'escrevedor', pagodeiro e tantos outros.

 

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