O que vivi do racismo institucional e estrutural


 que narrativa de história você ajuda a construir ou manter? | foto: pixabay


Me perguntaram nessa semana quando foi que senti o racismo na minha vida profissional. E a minha resposta, quase automática, foi: mais fácil lhe dizer quando não. Em um cenário em que as oportunidades não surgem para todos e sonhos são sufocados como consequência de uma estrutura institucionalizada e escancarada no Brasil, é lógico que pessoas negras vão sentir o peso do racismo a vida inteira.

Antes vale lembrar que...

É importante iniciar essa conversa deixando claro que o racismo no mercado de trabalho (e nas demais relações) não é marcado e validado necessariamente de forma nominal, isto é, quando alguém agride verbalmente o outro, a partir das características físicas ou de forma pejorativa (a injúria racial). Ele está no cotidiano, nas articulações sociais que consolidam constrangimentos e práticas que colocam as vítimas em condições diferentes dos demais membros de uma equipe, muitas vezes disfarçado por àquele velho e conhecido discurso do mérito. Talvez por isso seja tão comum pessoas, com a realidade diferente da encarada e sofrida por pessoas negras, não sentirem o peso dessas relações e atos no dia a dia e, desse modo, tenham tanta dificuldade em considerar real e agressiva algumas de suas práticas diárias.

E antes mesmo de iniciar meus relatos, creio que é preciso fazer um profundo exercício reflexivo e você deve se perguntar: trato todos da minha equipe da mesma forma? Dou as mesmas oportunidades, remuneração, benefícios e tolerância aos erros? Trato meus colegas de igual para igual? O que é que escondo quando afirmo que fulano, que coincidentemente é negro, não possui o perfil para determinada ação ou trabalho? É realmente uma questão técnica? E quando este tem qualificação e domina técnicas e ainda assim não é o suficiente? E quando eu, na posição de contratante, quem valoro o trabalho das pessoas negras, procuro ser justo ou me aproveito da estrutura dominante (e social) em meu favor? Porque será que é possível negociar preços, condições de trabalho e horário de forma mais precária com pessoas negras e com brancas, nem tanto assim? É só uma questão técnica ou entra nessa decisão o lugar onde estas pessoas moram, a aparência, a cor da pele e todos os aspectos que conhecemos bem, mas que ignoramos quando a narrativa convém?

Bom, essa reflexão é pessoal e cabe cada um que está lendo seguir adiante com ela e agir assim que identificar qualquer sinal de reforço às práticas racistas estruturadas e institucionalizadas. E não. Não precisamos que outras pessoas (que não são negras, sobretudo), opinem e digam se as atitudes ou trato diário são ou não racistas. É agressivo e completamente fora do propósito você, principalmente enquanto branco, ser quem valida ou não a sensação de estranhamento e a dor de quem passa e enfrenta as consequências do racismo institucional. Quando você quer determinar ou conceder o direito de a pessoa sentir ou não determinado estranhamento, automaticamente, está reforçando a estrutura institucional opressora.

Último ponto antes de iniciarmos de fato. Não estudo o racismo e nem sou especialista, essas impressões e relato são da minha experiência enquanto alguém que viveu algumas delas, pelo relato de amigos, conhecidos e pelas leituras acumuladas ao longo da vida. Essas reflexões podem ser válidas para que você, leitor@, reflita e procure outras fontes mais sólidas e embasadas para aprofundar-se nas questões aqui trabalhadas (e as que não, também).
| foto: pixabay

Escolhas? Mas que escolhas?

Da pergunta que abre esse texto, destacaria um dos momentos mais marcantes dessa minha história recente. Quando escolhi fazer jornalismo – após formar em Relações Públicas – e comentava com as pessoas, era quase sempre unanime elas associarem como fazer jornalismo, sendo negro e fora do padrão estabelecido até então, automaticamente trabalhar nos bastidores, no impresso, com áudio, em lugar que não pudesse mostrar a cara. Mas e para as pessoas brancas, como é a reação? ‘Hum, que legal, então você vai para o JN’?. Primeiro baque. Esses símbolos não são gratuitos e são apenas uma sinalização do lugar que as pessoas acreditam que devemos ou podemos ocupar.

Por mais duro e desestimulante pudesse ser constatar a origem dessas impressões facilmente, demarcar minhas preferências e afirmar que meu interesse nunca fora bastidores, e aqui abro um parêntese para dizer que não há problema algum em trabalhar neles, mas o fato de colocarem como a primeira possibilidade reflete algo que está no imaginário social e no próprio mercado de trabalho. Era quase uma afronta minha afirmar para os outros, o interesse em experimentar outras coisas além das que eventualmente a sociedade e o mercado provavelmente me dariam.

Durante a faculdade, os estágios eram concentrados entre os que tinham o dito perfil para aparecer, e os que tinham para as demais funções, encaradas como secundárias. Não se viam tantas seleções para as melhores vagas correndo, parecia mais um mercado fechado, morto e que nada acontecia, já que essas oportunidades eram direcionadas por quem detinha elas, que por sua vez, direcionavam para essas pessoas ditas com o perfil. E como eu poderia ficar diante de tudo isso? Quando se está na faculdade, ao longo dos 20 e poucos anos, dificilmente temos consciência desses processos e vamos nos silenciando e optando por lugares que sobram e nos são dados, muitas vezes não percebendo que eles refletem a estrutura social que nos tira até o direito de experimentar.

A entrevista

Até então, ao longo dos semestres, seguia nesse mercado com certa ingenuidade e a ficha só veio cair quando me candidatei para uma seleção em um grande veículo da cidade. Lembro dos detalhes como hoje. Me arrumei, separei meu portfólio, organizei todos os meus trabalhos que achei interessante dividir com a pessoa que iria me selecionar e fui até a empresa. Ao chegar lá, em meio a uma redação movimentada, fui atendido.

Acho que se a entrevista durou três minutos foi muito. E ela me pareceu tão traumática que não conseguia na hora entender o desconforto que borbulhava em meu estômago, diante do que se passava pelos meus olhos. A pessoa que estava ali me selecionando, com vários anos de experiência, simplesmente pegou o meu currículo impresso e entregue na hora, passou o olho e falou: 'hum, então você é formado em relações públicas também, legal'. Fim. Nada mais. Nenhuma pergunta sobre minhas experiências, projetos, vivência, cursos avulsos (e olha que eu sou o louco dos cursos), atualidades, noções políticas, econômicas, históricas e culturais. Nada. Absolutamente nada. Nem um olho no olho, uma conexão, nada. E completou: ‘bom, agora faça aí esse texto e quando terminar daremos um retorno’. E terminei e entreguei. 

 é uma questão técnica de perfil ou racial? | foto: pixabay

A resposta dessa seleção nunca viria se não ousasse mandar um e-mail perguntando sobre, três semanas depois. E você imagina qual foi a resposta, certo? ‘Ficamos com outra pessoa’. Tempos depois descobri que essa vaga foi ocupada por uma pessoa branca. Pode ter sido uma questão técnica ou coincidência, talvez. Mas o fato de alguém que se propõe a selecionar o outro sequer olhar o currículo e indagar sobre as experiências, conota que alguma coisa nessa seleção não está totalmente isenta. A impressão que tive foi a de que nem meu texto foi lido.

O ponto dessa história e de tantas outras é que sabemos quando fazemos boas entregas e sabemos quando estamos acima da média. Mas a própria noção de que se entregou algo superior à média para pessoas negras é silenciado, desprezado e se você não tiver um empurrãozinho de mais alguma coisa ou alguém, não vai rolar. No meu caso, não rolou.

Seria o mercado uma constante ‘Entrevista’?

Esse foi um dos marcos em que senti o racismo duro e velado no mercado, que está no nosso cotidiano todos os dias, e que poucas pessoas abrem mão de seus atos para repensar suas práticas. Marco não só pela péssima sensação que experimentei, mas por perceber que essa escolha não pareceu se basear em uma questão técnica, mas sim meramente pessoal e porque não dizer racial? É evidente que perdemos algumas vezes e nem sempre vamos passar em todas as seleções. Mas o fato de alguém sequer ter olhado para meu rosto, meu currículo e me dispensar como se tivesse decepcionado ao olhar para o currículo e para aparência, diz bastante coisa. Eu com duas formações em faculdades públicas, tendo feito projetos e conteúdos audiovisuais, um amplo portfólio e até um aplicativo (totalmente fora da curva na época) não foi o bastante para sequer ter tido atenção. E quando realmente é?

Foi a partir dessa experiência – não foi a única e ela se desdobrou de diversas outras formas e facetas – que comecei a entender que é assim que funciona em boa parte dos casos. Nunca será o suficiente. Pessoas negras precisam estar sempre entregando mais que seus colegas brancos. E na etapa do mérito as celebrações são subdimensionadas, enquadradas em uma janela para que não permita que essas pessoas negras vislumbrem um cargo, posição ou salário melhor

| foto: pixabay

É como se todos os negros que batessem em lugares pedindo oportunidade tivessem a mesma versão da história em que sempre nos coloca em uma posição de submissão e necessidade, que supõe que o empregador fará uma excelente ação social para ele, quase o salvando do desemprego e da fome, mas que não se reflete em pagar e valorar o trabalho de forma justa, como faz com outros. Ainda que ele acompanhe e veja no dia a dia as entregas acima da média (e aqui destaco que ver é diferente de reconhecer e creditar), que muitas destas pessoas negras fazem. Contudo, por ser conveniente para estrutura do racismo institucional e por razões socioeconômicas mesmo (uma se soma a outra), é preferível deixar pessoas negras ali, no escanteio, servindo, quase que apagado em nome da servidão. Tudo isso se normatiza. É a entrega em dobro, é a submissão e invasão de espaço em prol dessa oportunidade que passa anos-luz pela consciência, para algumas dessas pessoas que estão em cargos de chefia.

Tudo isso é desanimador, cansativo e quando expomos qualquer desconforto, o nosso sentimento é encarado como algo secundário, excessivo, ‘que vê problema em tudo’ ou que se é uma pessoa ‘reclamona’, que as observações estão fora da realidade. Resultado? O ponto de vista do branco que está no cargo superior é a que prevalece. Simples, cru e duro.

E quantas síndromes e problemas de autoestima desenvolvemos no meio do caminho enquanto tentamos ascender como nossos colegas brancos? Da exaustão por entregas superiores à síndrome do impostor. ‘Será que mereço estar aqui?’, ‘É tão simples isso que estou fazendo que vou fazer mais’, enquanto isso, o mesmo colega branco faz alarde por entregas comuns que estão nada além da sua expectativa do contrato de trabalho. Mas encaradas pelos líderes como um trabalho de excelência. E há quem diga que não se engana e é justo com todos. O que reforça em como o discurso do mérito também esconde essa estrutura opressora.

Oportunidades iguais? 

| foto: pixabay


O que quero dizer é algo óbvio: que as oportunidades não são iguais, elas não chegam de forma sistêmica. No meu caso, dentro dos poucos privilégios que tive na vida para conseguir conquistar meus diplomas e títulos, não foram de forma gratuita e sem grande esforço. Atrás de mim tem uma geração de pessoas que foram silenciadas de cursar faculdade, ter um espaço e oportunidade melhor para que eu pudesse ser hoje o que sou. E mesmo assim, não é o suficiente, nunca parece ser.

É preciso sempre se desdobrar, entregar mais, sofrer com espirais de silêncio e fazer de conta que nada acontece e aceitar os poucos espaços que lhe dão, sem que sequer tenha a chance de experimentar algo além. Seja nas funções de bastidores ou com a cara na rua, o mercado de trabalho ainda está anos-luz de superar as próprias práticas racistas que estão institucionalizadas e estruturadas.

É um longo caminho, mas nem todas as empresas e pessoas estão dispostas a enfrentar isso. É sempre mais fácil e cômodo emular o ativismo em plataformas que são visíveis para os outros, mas na prática, ali no cotidiano, no a dois e individual, as atitudes racistas acontecem sem sequer se passar por um exercício de autorreflexão. E você sabe por que quase sempre isso não acontece? Porque infelizmente em nosso país quem detém seus privilégios dificilmente quer abrir mão deles. É mais fácil culpar os outros, culpar o governo, o sistema, ou usar o discurso do mérito e da cegueira de que ‘não é e não concorda’ e do achismo baseado em nadismo. As nossas práticas dizem muito do que realmente acreditamos e somos.

Por que onde moro, a cor da minha pele tem que ser determinante para receber um salário, reconhecimento e oportunidades melhores? Porque as cobranças têm de ser desleais e não posso questionar, sem que isso implique pôr em risco as minhas conquistas?

Estamos o tempo inteiro lutando e dizendo: nos deem oportunidades e condições reais, não nos coloquem em caixinhas a partir das suas concepções de mundo, principalmente, quando elas não estão expandidas e refletem a estrutura racista. O maior de todos os erros é considerar que as pessoas negras não podem (e nem merecem) ganhar mais entregando algo realmente equilibrado com a sua saúde física e mental, e sem recorrer a exaustão (e não na obrigatoriedade de ser sempre além e nunca reconhecido).

Precisa ser mais do que uma questão de oportunidades ou uma hashtag para usar na rede social. Precisa entrar na cabeça e firmar uma nova norma. Há um longo caminho para seguir, você está pronto para se transformar também?

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