Outra vez

foto: oticacotidiana

A aurora do dia penetra suavemente nos meus olhos, enquanto percebo que o sonho já está no fim e estou retornando ao meu corpo. Abro-os e fito o teto branco e o lustre verde apagado. Tento inutilmente decifrar o lugar desconhecido em que estou. Viro à esquerda e vejo um porta-retratos com rostos desconhecidos, em uma mesinha de cabeceira. À direita, um armário espelhado, que reflete a porta de uma varanda, com a paisagem absurdamente bela do sol casando-se com o mar. Parece um portal para outra dimensão.

Passo a mão nos cabelos e no rosto úmido. Sento-me na cama e observo a paisagem pelo espelho. Estou completamente perdido e não faço ideia nem se estou correndo risco de morte. Como cheguei até aqui? O que é este lugar? Levanto com cuidado e piso no chão gelado, com o cuidado de quem pisa em um lugar feito de ovos. Debruço-me com cautela na porta da varanda e instintivamente a abro para ver mais de perto a paisagem. É incrível o som que vem de lá. O canto do dia e as cores tão pálidas e quentes tornam o ambiente aconchegante. Por um momento, esqueço que não sei onde estou. Tudo parece conhecido.

De pé, completamente paralisado com a beleza que vejo, sinto o cheiro de café sendo feito. Embora não goste tanto dele, o seu cheiro me convida a bebê-lo. Tenho receio de fechar os olhos e de respirar fundo para relaxar. Distraio-me com os meus pensamentos e desejos, ainda de olhos abertos.

De repente, sou surpreendido com duas mãos macias e quentes que me abraçam pelas costas. Sinto o perfume leve, que se confunde com a própria brisa que vem de fora. Ao mesmo tempo, ele é particular. Vejo, ainda de costas, a sua sombra desenhando o seu corpo no chão, quando escuto sua voz me dizendo: — Oh, então você acordou, achei que fosse dormir mais — diz, virando-se para mim e encarando os meus olhos perdidos, como se eu soubesse exatamente quem era. — Você parece assustado. Está tudo bem? — perguntou. Recebo um beijo de leve e continuo em silêncio. Tento desvendar de quem seria este semblante harmônico e exageradamente belo. Ele parece ter sido feito à mão. Devoro cada traço do seu rosto, para que ele faça parte de mim.

Percebendo meu silêncio, ela continuou: — Fiz um pouco de café, não quer me acompanhar? Não sei como agir. Tenho medo de fazer algo errado e tento fazer de conta que realmente sei onde estou e com quem. Encaixo um sorriso no meio do próprio rosto abismado e lhe respondo: — E como poderia não aceitar um convite feito com este sorriso? — Ah, seu bobo, sempre tão doce! Te espero na sala ao lado, os pães estão frescos. Não demore, vou pôr a mesa para a gente. Teremos um longo dia.

A angústia da incerteza de não saber o que era tudo isso me incomodava, no entanto, paradoxalmente, me sentia leve e bem. O sorriso e o cheiro talvez fossem conhecidos, mas não conseguia relacioná-los a ninguém que conhecesse, pelo menos neste momento. Enquanto tento encontrar algo material, sento-me novamente na cama e encaro o meu rosto no espelho. Toco meu rosto na tentativa de descobrir se era um sonho ou delírio. Distraído e emocionado com tudo, fecho meus olhos por alguns segundos. Sinto paz, a felicidade e a euforia em sentir o amor por inteiro. Tudo parece transformado em mim. Respiro mais fundo até que percebo que a cor que via com os meus olhos fechados já não era a mesma.

Abro os olhos apavorado. Percebo que estou de pé e no meu quarto. Fito com rapidez e precisão o velho quadro na parede, os CDs e as calças espalhadas na cadeira. Tudo é novamente reconhecível. Embora não soubesse o que estava acontecendo, o cheiro ainda estava permutando no ar. Podia senti-lo exatamente como há poucos segundos. Respiro fundo, em um ritmo desesperado, e tudo que quero é manter aquele cheiro dentro de mim. Lembro-me do rosto devorado, que agora é lembrança. Minha mente digere essa sensação de infinidade.

Caminho ainda meio bambo e sento na cama intacta. Tropeço em meio a um mundo de coisas no caminho. Vislumbro encontrar o equilíbrio e a paz novamente. Estou cético por não ter certeza e não saber de nada. Estou refém de alguém que desconheço. Fecho os olhos e o desejo é de voltar no tempo e no espaço, da mesma forma em que saí de lá e voltei para o conhecido. Nada acontece, ou melhor, aconteceu: desejei sentir aquilo outra vez, apenas para sempre. Foi intenso demais para ter sido sonho ou delírio.

Noto que agora terei longos dias. Noto que o meu tempo nunca mais será o mesmo. Aproximo-me da janela. Vejo as cores do dia e o movimento cotidiano. Rostos desconhecidos passam pelos meus olhos, e neles encontro a certeza de que este foi apenas o primeiro passo para não desistir de encontrar e ter você.




Comentários

  1. Oi Vinicius
    Nossa, eu viajei em suas palavras, vc escreve muito bem, acho que já te falei isso (kkkkk). Terá cenas do próximo capítulo?
    Bjos e uma ótima semana.

    http://ashistoriasdeumabipolar.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  2. Olá Luciana,

    Sempre um prazer ter você por aqui.
    Ainda não sei, acho que o conto terminou com uma ideia de que quem está lendo construa o final. Talvez eu dê continuidade, mas é muito provável que não. rs

    Ótima semana pra você também.

    :**

    ResponderExcluir
  3. Awn, que lindo, Vinicius! Adoro esses contos assim, com uma dose de romantismo.

    Fiquei até sem palavras pra comentar.

    :*

    ResponderExcluir
  4. Oi Vinicius!

    Lindo texto! Suave e terno!

    No início, pensei em um sonho ou quem sabe uma realidade como Matrix, mas depois me acomodei em uma sensação do amor que ainda não se via.

    Beijos.

    Lu

    ResponderExcluir
  5. Erica,

    Fico feliz que tenha se envolvido com tanta intensidade com este conto.

    Agradeço a leitura!

    ResponderExcluir
  6. Luciana,

    Obrigado pelo comentário. Bacana sua interpretação você leu pensando em coisas diferentes e ao mesmo tempo próximas, muito bom saber disso.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Bem-vind@ a Ótica Cotidiana!
Obrigado pela visita e leitura do texto.


Participe deixando a sua opinião, comentário ou questionamento sobre o texto.

NOTAS :

- Não serão tolerados qualquer mensagem contendo conteúdo ofensivo ou de spam.
- Os comentários são de plena responsabilidade dos seus autores, ainda que moderados pela administração do site.
- Os comentários não representam a opinião do autor ou do site.

Não pare agora... Veja os textos mais lidos!