O turista, o beijo e o depois
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o centro histórico de salvador | foto: vinicius gericó |
Setembro tem um charme próprio. Ainda não é verão e já está longe do inverno. O sol, entretanto, de vez em quando se intimida. Sua luz resiste entre as nuvens, que deixam frestas escapar, dourando a centenária Salvador. O calor, porém, é onipresente. Gruda no lençol à noite, na camiseta de manga curta e até nos pingos da testa, que caem no chão, expulsos por uma passada de mão na cabeça. Quem consegue suportar essa cidade sem querer se refrescar? O homem que vende caldo de cana e o outro que vende sorvete da Cubana estavam na primeira esquina do Centro Histórico, sem imaginar que, alguns quilômetros dali, uma história que nada tinha a ver com eles começava. Uma história sempre regada pela sensação de encontros que flertam com a dúvida entre destino ou acaso.
Os dedos deslizavam pelas telas; as trocas de mensagens revelavam promessas, faíscas de sentimentos e acolhimento. O avião que trouxe o turista veio de longe. Literalmente cruzou o país para um encontro que não aconteceria se tivesse sido planejado meses antes. A beleza disso era justamente a dualidade: um acaso muito bem articulado ou uma casualidade provocada por quem precisava se encontrar.
O pneu do avião tocou o solo quente de Salvador. O impacto, violento e preciso, era necessário para fazê-lo parar. O ouvido do turista agonizava uma dor leve, um abafo provocado pela altitude, talvez isso tenha deixado ele fora de si por um tempo, tempo suficiente para alcançar um lugar desconhecido dentro dele mesmo. Longe dali, o anfitrião se arrumava com cuidado. Escolhia as melhores músicas para elevar o humor e apresentar sua melhor versão.
A primeira vez que se viram foi naquele apartamento simples, mas acolhedor. Ali, o turista estava hospedado. O anfitrião saiu do carro e, de longe, foi observado enquanto caminhava até a porta. Os olhos azuis marcavam cada passo, como pequenas promessas no ar. Quando finalmente se encontraram, não houve muitas palavras. Estavam sem jeito. Os sotaques eram diferentes, mas se conectaram perfeitamente. Abraçaram-se. Aquele abraço apertado, tímido, de quem descobre o início de algo deliciosamente estranho.
Dali em diante, tudo parecia escrito por mãos invisíveis e talvez previsíveis. Não havia mais volta. A conexão estava feita. Subiram rapidamente, e a porta se fechou. Entre pressa e curiosidade, o silêncio foi quebrado pela aproximação. Sem hesitar, o turista tomou a iniciativa e, num gesto inesperado, beijou-o. Um beijo simples, intenso, carregado de urgência silenciosa, como amantes tentando devorar o novo. As pontas dos dedos descobrem partes inexploradas do outro, em meio a olhares fixos. Mas como o anfitrião estava olhando? Se houvesse um espelho além daqueles olhos azuis, ele seria capaz de se ver? Temeria o reflexo vulnerável, a entrega, o afeto que entregaria dali em diante?
Caminharam juntos por horas. A cidade era o palco, mas o que brilhava era o modo como se tocavam, como se aproximavam. Ele roubava beijos em cantos discretos, falava de assuntos aleatórios, ria baixo, fazia planos ao vento quente. Planos leves o suficiente para não pesarem no coração e nem na realidade. Palavras que encantavam, mas nunca se comprometeriam com o depois. Compartilharam histórias e relações passadas. Riam com suavidade. E esse foi um dos maiores riscos: porque rir junto, às vezes, é mais íntimo do que o sexo. Eles corriam das nuvens passageiras e o turista comia acarajé de modo desengonçado. "Como é que come isso?". O anfitrião, cético por natureza, quis acreditar de novo. "Quem sabe... quem sabe seja o início...".
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torta red velvet | foto: oticacotidiana |
"Quem sabe Porto Alegre, né? O que você acha?", disse ele, com um sorriso leve de quem desenha futuros. "Café da manhã, beijos secretos, nada de promessas. Só a gente e a cidade. Vou deixar você trabalhar, mas te encho de beijos, mesmo que te atrapalhe".
O anfitrião olhou-o atento, uma combustão de sentimentos atravessando-o. Uma sombra de ceticismo o assombrava, mas a ideia soava bem. Queria acreditar que, dessa vez, seria diferente. "Sim", respondeu, rindo. "Sempre quis conhecer o Sul. E vai ser ótimo ter você como guia".
Havia algo no ar, um temor invisível no anfitrião. Algo fraco, mas real. O tempo se arrastava entre eles, e um dia durou mais que o esperado. As conversas sobre o amanhã eram cruas, brotando entre olhares cúmplices.
Até que veio a viagem só dos turistas. E, com ela, o silêncio disfarçado de "estou com amigos".
Talvez sinceridade estragasse a estética. Afinal, há um certo charme em parecer sensível, desde que não se precise sentir.
Vieram áudios espaçados, convites adiados, promessas vazias. E, no fim, a descoberta: ele não estava sozinho. Nunca estivera.
O outro esperou. Não por palavras, mas por um gesto. Alguém que dissesse, com ações e tempo, que também queria estar ali.
Mas o turista era como o vento: aparecia com graça, partia com leveza. Deixava o outro com as mãos cheias de “quase”: quase o conheceu, quase se envolveu, quase gostou de verdade... quase.
O abraço prometido, os beijos furtivos, os toques, tudo ficou na memória de quem sentiu primeiro. E sozinho. Durante as semanas que se seguiram à partida, o anfitrião, vez ou outra, era surpreendido pelo táxi que desviava do caminho, passando pela porta do apartamento. Como se fosse um filme que nunca se acabava, revivia a cena do turista esperando por ele. Engolia seco, segurava a vontade de escrever, de dizer que ainda o lembrava, de que queria mais. Seguia engolindo o impulso de se reinventar num gesto ousado, surpreendendo-o com uma visita, com a esperança de que aquilo poderia, talvez, crescer. Mas o engasgo era sempre o mesmo: o silêncio de um quase-amor que não se permitia ser, e a lembrança, já diluída, de um 'nós' que jamais seria.
Hoje, ao lembrar daquela tarde, ele ainda sorri. Porque foi bonito. E quem ousaria negar a beleza daquele encontro, da perfeição com que tudo se encaixou? Mas sorri também porque aprendeu: carinho que não se repete não é cuidado, é distração. E ele cansou de ser distração para gente indecisa.
Os meses passaram. Entre tragédias e conversas cada vez mais raras, havia uma tentativa implícita de reencontro — mas só de um lado. O anfitrião queria ser turista, o turista não queria receber ninguém. Ou ele não queria receber apenas e somente o anfitrião? Ele tinha sua vida, suas escolhas, seus amores incertos, mas não soube livrar-se do anfitrião sem deixar marcas.
O calendário foi virando páginas. As mensagens? Quais mensagens?
O turista é daqueles que ama a ideia de ser amado, mas teme a profundidade que isso exige. Ensaia afetos com maestria, mas evita qualquer enredo que exija permanência, sobretudo com pessoas que sequer correspondem a estética do que ele pode publicar no próprio Instagram. O amor, para ele, precisa caber numa legenda bonita e ser uma fuga conveniente. O anfitrião, ao contrário, ama com coragem e entrega-se por inteiro, mesmo sabendo do risco.
Não podia dar certo. Podia? Ele quis, tentou... Se encontros são surpresas, quem sabe esses momentos de felicidade com continuidade também não poderiam ser?
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centro histórico reconstruído com IA, salvador| foto: oticacotidiana |
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