Etta


O quarto ainda estava
preenchido pelo escuro, quando Etta abriu os olhos e percebeu despertar de mais
uma noite sem sonhos. Virou à esquerda e, no criado-mudo, pegou o seu telefone
para constatar se estava ou não atrasada. Era cedo, apenas o começo do dia, mas
já era tarde, porque o lado esquerdo da cama de casal já estava vazio e com a
marca do corpo ausente. Etta aproveitou o telefone e, com o seu rosto refletido
na tela, notou marcas na pele deixadas pelas bainhas dos lençóis e
travesseiros. Incomodou-se. Sentou-se e parou por alguns segundos, atrás de
algo para pensar. Acendeu a luz e encarou o quarto repleto de móveis, livros e
roupas. Levantou e caminhou até a janela e moveu a cortina que pintava o
quarto de preto. A luz artificial se misturou com a luz do dia. Em contato, se
anulavam. A força da segunda fazia a da primeira parecer inútil. Constatou. Ao
arrastar o corpo para desligar a luz, seus olhos notaram, na parede
recém-pintada da casa nova, próxima ao pé de sua cama, pequenas plantas trepadeiras
e um círculo de limo. Pareciam ali já há algum tempo, mas era recente.
Confortou-se com a justificativa dada para si, de que a casa estava com problemas de umidade e ignorou. Colocou algo na mente, a fim de lembrar pagar alguém para resolver o problema. Do tapete grego, ao lado da cama, retirou e calçou as pantufas de cetim e caminhou pelo piso de granito da casa. Amarrou o corpo esguio num roupão branco alvo e sentou-se na cadeira da mesa, na varanda do quarto, pronta para encarar o horizonte. Bocejou. Perguntou-se onde estava a empregada. Logo lembrou da folga dada para este dia. Repetia para si que era uma boa chefa e concedera o descanso prometido. Sentiu-se aliviada, mas não por lembrar de que precisava preparar o próprio café.
Confortou-se com a justificativa dada para si, de que a casa estava com problemas de umidade e ignorou. Colocou algo na mente, a fim de lembrar pagar alguém para resolver o problema. Do tapete grego, ao lado da cama, retirou e calçou as pantufas de cetim e caminhou pelo piso de granito da casa. Amarrou o corpo esguio num roupão branco alvo e sentou-se na cadeira da mesa, na varanda do quarto, pronta para encarar o horizonte. Bocejou. Perguntou-se onde estava a empregada. Logo lembrou da folga dada para este dia. Repetia para si que era uma boa chefa e concedera o descanso prometido. Sentiu-se aliviada, mas não por lembrar de que precisava preparar o próprio café.
Estava sem fome, mas
sentiu-se obrigada a comer. Fazia parte da própria rotina. Cortou o pão em três
pedaços grandes, quebrou dois ovos e os fritou. Pôs na mesa a jarra de café,
leite e suco. Não comeria tudo, mas enchia a mesa, porque se sentia bem.
Curvou-se para tela do seu telefone e passou os dedos para responder mensagens
e e-mails. Atendeu algumas ligações. Era monossilábica ao falar, mas pelos
dedos parecia espontânea e feliz. Ria sem rir, ficava triste e parecia
empolgada sem estar.
Após o café pouco
experimentado, tomou um banho lento e vestiu o corpo magro num vestido violeta.
Soltou os cabelos longos e pretos. Passou o pente encarando o todo do corpo e
rosto, ignorando as partes. Notou que a blusa florida no closet já estava
lavada, mas desistiu de usá-la. Maquiou-se. Hoje haveria de ser um dia
especial. Merecia uma produção a caráter, imaginou. Sempre imaginava. Era isso
que ela fazia questão de demonstrar. Olhou-se no espelho, maior do que seu
corpo, e tirou algumas fotos banais com o telefone, demonstrando felicidade e
espontaneidade, para exibir aos amigos e admiradores.
Deixou duas camisas
vermelhas e uma bermuda florida do marido em cima da cama desarrumada. Enrolou
a bermuda em formato de cilindro, para inutilmente parecer ocupar menos espaço,
em meio às outras duas peças. Saiu às pressas, mesmo sem sinais de atraso.
Obrigava o corpo a aquecer-se. A lembrar e relembrar a se importar com a
rotina. Entrou na garagem e em seguida no carro. Saiu sem qualquer som e
preferiu fazer a viagem em silêncio.
Ao cruzar a rua da
floricultura Dalton D.TH, cumprimentou o dono, Sr. Dalton, e conversaram
rapidamente sobre a banalidade da própria vida e existência. No fim, o próprio
local serviu de pano para a conversa:
– De qual flor a Sra.
mais gosta? – perguntou Dalton, com curiosidade e apreço.
– Não sei, nunca sei. –
parou por alguns instantes e suspirou, encarando qualquer coisa. – Acho que
gosto daquelas! – Etta apontou para as flores Zinnia.
– Não posso diferenciar
as flores, mas posso sentir o cheiro de todas elas.
Etta o encarou e sorriu
falsamente. Desejou um bom dia se despedindo. Dalton inesperadamente
entregou-lhe duas das flores apontadas por ela, lhe gerando surpresa. Agradeceu
e seguiu. Novamente o encarou o rosto na tela, para ver as horas, seguido de
uma varredura no retrovisor do carro parado. Viu seu rosto e um
pedaço da estrada, como um bolo único e coberto por uma película de poeira. Etta
tremeu ao o mosaico, que o seu rosto fazia parte, parecer acinzentado.
Perturbou-se e decidiu ir caminhando para o trabalho. Deixou na esquina,
próxima à floricultura, o carro automático e recém-ganhado do marido. Fazia
esforços para equilibrar-se em salto-alto, no chão negro e quente coberto de
asfalto e concreto. Nas mãos finas e pequenas, uma bolsa média, onde colocava
tudo que lhe parecia útil.
Para ganhar tempo,
seguiu em direção ao bosque, onde as folhas pareciam secas e os seus sapatos salto-alto
estralavam o que estava morto forrando o chão. Sentia orgasmo no estralo. Poc
troc, poc troc, poc troc. Era uma das poucas sinfonias que lhe dava prazer e
desenhava o riso no rosto inexpressivo. No caminho, encarou um rapaz, num banco
de madeira crua. O homem respondeu o olhar. Ao ver a flor carregada, ofereceu
outra, um Girassol, mas esta parecia murcha. Etta aceitou, sem resistir e se
sentiu especial e superior ao rapaz. Voltou a pisar nas folhas secas com mais
força e vitalidade. Poc troc, poc troc, poc troc. Vitória. Ouviu o choro de uma
garota se misturar com a de um recém-nascido. Dois jovens namorados brincavam
de cabra-cega e seus olhos estavam vedados por um pano laranja. Um procurava o
outro no meio das folhas secas. Pareciam múmias e zumbis sorridentes. Troc,
troc, troc. Guiavam-se pelo sinal do que estava morto. Ouviu também sons
abafados de conversas livres, informais e públicas. Tudo lhe parecia inferior.
Seus olhos avistaram
uma Oliveira, única coisa que parecia viva no bosque de árvores esguias, como o
seu corpo. Ao lado, uma mulher velha – com rugas e marcas no rosto e corpo – a
encarou sem sorrir. Etta observou as linhas do rosto da velha e assustou-se com
os desvios marcados pelo tempo. Pensou se um dia ficaria assim, mas decidiu não
se aprofundar, porque o seu telefone novamente havia lhe lembrado do dia ainda
não iniciado para o mundo. Ao se assustar, com a impressão de aproximação da
velha, esbarrou-se numa criança, que trazia uma caixa de jabuticabas. O bosque
estava num lugar de grande circulação. Deixou o telefone cair, que, com a
queda, a tela rachou. Apática, encarou-se novamente e viu seu rosto jovem,
aceitável e desejável, deformado pelas rachaduras. Suou frio e a maquiagem do rosto começara a desmanchar. Desesperou-se. Sentiu medo da sua aparência e mais uma
vez, andou rápido. Pisou nas jabuticabas sem perceber – por isso nem pediu
desculpas, mas se tivesse percebido é provável que não pedisse – para chegar
logo ao trabalho. Poc troc, poc troc.
Na torre onde trabalha,
passou por funcionários da empresa, mas não os saudou. A tensão no ambiente
profissional lhe parecia amorfa, como tudo que seus olhos ousavam encarar. Foi
direto ao elevador e lá viu o seu corpo e rosto em quatro dimensões. Fixou-se
em uma e ajeitou os cabelos escuros e esticou o vestido violeta até os joelhos.
Da bolsa retirou um batom e preencheu os lábios grandes e bem delineados, com o
tom harmônico exigido pelo vestido. Abandonou as flores que segurava no chão do
elevador, antes das portas abrirem e mais pessoas entrassem para recriminar o
ato. No topo, entrou no setor de trabalho e limpou as solas dos sapatos no
tapete com a marca da companhia. Poc, poc, poc. Seu caminhar quebrava o
silêncio do ambiente, mas passava despercebido. Sentou-se em sua mesa e notou flores
sem um único cartão. Olhou para os lados e ninguém demonstrou interesse no
presente.
Seu rosto refletiu
embaçado no monitor preto, enquanto organizava a própria mesa, retirando os
cartões de crédito preto e prata, bloquinhos e fotos. Viu no mural da sala,
retratos de suas viagens muito bem acompanhadas, o marido que causava inveja
por ser belo e bom, cerimônias de premiações, rostos felizes, crianças – que
talvez fossem os seus filhos – e os seus pais. Os certificados de cursos e
prêmios conquistados, presos na parede, a fazia sentar-se com mais vitalidade
na cadeira acolchoada de couro. No meio do dia, depois de uma manhã em que
levantou e falou pouco, parou para almoçar sozinha. Comeu um pedaço de torta de
cereja na sobremesa.
No final do dia, a luz natural começava a diminuir,
enquanto, do outro lado, uma luz azul e branca invadia parte da sala. O claro
trazendo o escuro e o claro vendo-se escuro. O claro fora anulado. Deixou tudo
na mesa como estava, inclusive as flores recebidas. Dobrou um papel e escreveu
algo nele. Retirou da gaveta da mesa um envelope e escreveu o número 30.
Colocou nele a mensagem e o selou com os lábios joviais e vivos. Pôs ao lado
das flores e saiu da sala. Despediu-se da equipe com duas ou três palavras e
seguiu por um longo corredor até o elevador. Encarou-se em quatro dimensões
novamente e ajustou os cabelos, agora mais armados, para frente e pros lados
seguidas vezes. Viu as horas pelo telefone com a tela rachada. Fatigou-se.
Tanto faz se é cedo ou tarde, segunda ou sexta. O tempo parecia-lhe sempre o
mesmo: inútil. Seu desejo era o futuro, que sempre esperou chegar, e as
representações mantidas do presente e passado.
No caminho de volta
para casa, notou o movimento da rua. Mas as pessoas faziam questão de ignorar
umas às outras. São monossilábicos, quando se alimentam da impressão da
companhia imprevista. O imprevisto é o pior inimigo dos presentes, sacode todos
os sentimentos e traz à tona a própria instabilidade ignorada. Etta resolve
evitar o bosque e passa numa via movimentada, usada nos finais de semana para
caminhar e manter o corpo nos padrões. Sons de carros tomam conta do ambiente. Próximo
à floricultura, esbarra no carro, no mesmo lugar, e lembra-se da obrigação de
guardá-lo em casa.
Na garagem de casa,
estacionou. Retirou do banco do carona uma sacola, com objetos comprados no dia
anterior. Os tomates pareciam murchos, por causa da quentura, assim como a
alface e vegetais. Ao fechar a porta do carro e cruzar a da sala de casa, buscou
qualquer indício de família e companhia. Chamou o marido pelo nome, o marido
invejado pelos outros, aquele que deixou marcas no colchão pela manhã logo
cedo. Chamou as crianças louras, que já faziam comerciais de TV. Mas tudo que
encontrou foi à escuridão da noite recém-chegada, preenchendo o espaço e
desnorteando a percepção do caminho da própria voz.
Acendeu a luz. Caminhou
em direção à cozinha e deixou os sacos de compras ali. Do corredor retangular
de piso granito, com três portas fechadas de cada lado, sentiu um odor forte e
dirigiu-se ao seu quarto de casal. Tirou os saltos e seus pés sentiram o chão
gelado da pedra cara. Arrepiou-se. No quarto, acendeu a luz. A luz externa
pareceu inútil, diante da artificial. Próximo ao canto da cama percebeu que as
plantas trepadeiras estavam maiores e havia mais círculos de limo. Reforçou a
ideia de pagar alguém. Lembrou-se da manhã e noite sem sonho que tornaria a
ter. Correu pela memória os fatos do dia. O odor de tudo era muito forte,
quando seus olhos a lembrou de encarar a própria cama. Viu que ela estava
arrumada de forma impecável, com um lençol branco alvíssimo, preenchida de
flores de várias cores. ∞