Quando tudo dá errado

um não-tutorial de como lidar com a frustração! 

Bruno Bispo*
redacao@oticacotidiana.com



Chegamos à metade do ano. Eu sei que, desde março, parece que entramos num universo paralelo em que estamos diante das mesmas paredes há alguns séculos; e que muitos dos planos desse ano bissexto, de número cabalístico, ainda não se concretizaram ou até se perderam no caminho. Mas agora os seis primeiros meses se passaram e outra meia dúzia está adiante – é um bom momento para avaliar como estamos vivendo e fazer alguns ajustes necessários à nossa consciência. 

A decepção durou muito mais tempo. Mantive o foco no meu erro, na minha inaptidão, fiquei remoendo, ressentindo a perda. | foto: pixabay

Pra mim, parece que tudo deu errado. Os inúmeros planos que eu fiz para este primeiro semestre do ano não se concretizaram. Alguns foram suspensos e estão no inverno congelados até a primavera chegar; outros foram destruídos de maneira radical e irreversível. Um tempo que passou e não volta. Literalmente, “saudades do que a gente não viveu”. A decepção é inevitável, afinal havia um desejo que não se concretizou, um objetivo que não foi cumprido; e a frustração é um passo degrau abaixo para o sentimento de fracasso, baixa autoestima e menos-valia.

Vamos a fundo com as palavras. Decepção vem do latim deceptio, que significa engano, desilusão. Ora, quando criamos expectativas em algo e isso não acontece, nós “enganamos” a nós mesmos com a crença de que aquilo aconteceria, nos iludimos e então desiludimos. Não tem pra onde correr, a não ser que não acredite em mais nada, não deseje mais nada, não crie nada (e se transforme em uma múmia, intacta por fora e morta por dentro). 

Metade do ano já passou. O que ainda nos espera? | foto: pixabay

Com a frustração a história é outra. O termo em latim frustra significa inútil, ato em vão, e está relacionado a fraus, de onde vem “fraude” e “mentira”. Para a psicologia, é “algo cujo impulso foi bloqueado”. É uma reação ao vazio do não gozo, tensão sob uma expectativa que não se concretizou, é angústia, daquelas coisas que a gente prende e nem sabe explicar o porquê. O frustrado é goro. Quem foi criança nos anos 90/00 vai me entender – sabe aquele ovo de galinha que não foi cuidado, aquecido para se transmutar num lindo pintinho, mas que virou uma lama podre, escura e fétida? Ovo goro. Agora imagina ser alguém frustrado? Ser alguém goro, cujo impulso foi bloqueado? 

Dentro de cada um de nós há potencialidades que tendem a se desenvolver e se transmutar. Nossa história natural é de crescimento. Imagina ter sua potência de vida bloqueada, “quebrar a casca” e estar goro? | foto: pixabay

Nós nos programamos pra sentir felicidade, e isso pra mim é um grande problema. A gente sempre acha que vai ser feliz quando passar no vestibular, quando entrar na faculdade, quando formar, quando tiver o emprego dos sonhos, quando casar, quando divorciar... Adiamos nossa felicidade e sentimento de plenitude, ou a limitamos a um momento específico. Vou exemplificar. Eu pratiquei karatê durante toda a minha infância e até uns 15 anos de idade, treinava 2 a 3 vezes por semana, fiz exames de troca de faixa (uma avaliação técnica das suas habilidades para evoluir na graduação enquanto atleta), participei de campeonatos. Ganhei uma medalha. Ouro! Fiquei muito, mas muito feliz. Acho que essa felicidade durou, no mais tardar, uma semana. 

Mas também já perdi torneios, ou ouvi do meu treinador que não estava apto, que precisava treinar mais. A decepção durou muito mais tempo. Mantive o foco no meu erro, na minha inaptidão, fiquei remoendo, ressentindo a perda. Ressentimento. Perceba: RE-sentimento. Sentir de novo. E de novo. Um ciclo vicioso que nos faz andar em círculo ao redor de um sentimento geralmente danoso, doloroso, sofrido, como se a gente precisasse se agarrar no sofrimento não para aprender, mas para se punir.

Pensando nisso, hoje fiz um exercício de escrita. Escrever me faz organizar os pensamentos, transformar o abstrato muitas vezes confuso e acelerado em algo concreto, compreensível, acessível. Acredito que escrever tem sido a minha melhor forma de expressão pro mundo. Enfim, o desafio foi escrever num papel duas listas: uma de conquistas deste ano até agora, e outra de decepções. Comecei pelo que achei mais difícil – as conquistas: as mais significativas, depois as mais recentes, recordando as anteriores, mesmo os pequenos momentos de glória do dia-a-dia e, “bum”, eu tinha um enorme parágrafo. Fiquei surpreso.

Segundo passo: as derrotas. “Agora vou gastar a caneta”, pensei. Passaram-se uns 30 minutos e eu escrevi três linhas. Comecei a rir, sozinho. Então quer dizer que eu sou capaz de descrever várias conquistas, e por conta de umas duas decepçõezinhas eu tenho passado semanas concentrado naquilo que não conquistei e me sentindo fracassado? Tudo bem que podem ser não pequenas mas sim devastadoras decepções, como foi pra mim não ter a formatura que eu sonhei por anos. Ainda assim, é inegável a nossa tendência a gastar mais tempo e energia nos fracassos do que reconhecendo os sucessos.

Em suma, a gente acaba esquecendo que a vida é um processo e a resume às nossas vitórias. É como se um maratonista chegasse na corrida apenas na hora de atravessar a linha de chegada! Flip Flippen, em “Pare de se sabotar e dê a volta por cima”, diz que “a vida não é o que esperamos que ela seja – ela é aquilo que se torna”. Li essa frase como quem leva um soco no estômago. Cabe a nós escolher encarar a vida como um lento processo de aprendizado, tirando máximo proveito das alegrias e também das adversidades. 

Atleta cruzando a linha de chegada na Maratona Universitária, na China. Pressuponho que houve bastante treino para que existisse a grande chegada. | foto: pixabay

Sim, eu disse escolher. Estou dizendo que é fácil? Não. Tem dias que a gente perde e é como se uma falta de motivação paralisasse todos os nossos músculos; ficamos tão deprimidos a ponto de não conseguir trabalhar, às vezes sequer levantar da cama. A vontade que dá é de planejar um quadro agudo qualquer num pronto-socorro, conseguir um atestado médico e jogar tudo pra cima. (Inclusive, recomendação ‘quase’ médica: não façam isso, a gente frequentemente sabe). É um sentimento absolutamente verdadeiro.

Mas como então lidar com o inesperado sem se prender às cordas do passado, ressignificar as perdas e transformar a frustração em memórias de aprendizado? Não tenho um tutorial pra isso. Não sei. Sei que tudo que acontece na vida tem algum sentido, ou melhor, nós o atribuímos algum sentido. Há de haver algum significado para estarmos aqui, agora, vivenciando e experimentando esta única e breve vida. E, como a vida é um processo, espero descobrir (ou construir?) boas respostas para esta questão.


Bruno Bispo
Preto, baiano, filho de classe trabalhadora. Amante de livros, cerveja e sorrisos.
Estudante de medicina, professor, 'escrevedor', pagodeiro e tantos outros.

 

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