O vendedor de água



“Abre aí, piloto!”. As portas chiam a ausência de óleo e se abrem imediatamente ao pedido. Um garoto sobe as escadas de um dos ônibus amarelos, que circulam nas ruas do Centro Histórico de Salvador.

Em segundos, as suas pernas curtas chegam ao meio do coletivo. Ele põe um balde com gelo no piso e, com a pouca atenção dos que estão sentados, anuncia: “água dois reais. Apenas dois reais”. O garoto insiste na chamada e parece saber fazer propaganda.

Enquanto passa de cadeira a cadeira, ele observa os vendedores de rua e comenta -- para o que me pareceu ser um amigo imaginário: “Ó pá lá, o cara vendendo uma água boa dessas a um real!”.

Já são meio dia e o trânsito está lento. É a hora dos estudantes saírem das escolas e os pais fazerem fila dupla e congestionarem as já tão estreitas ruas do Centro. Contudo, o menino que vende água no ônibus parece que não foi à escola. O paradoxo é que ele veste a camisa de um dos colégios mais caros da cidade. É uma dessas camisas especiais, distribuídas para as atividades extraclasses. De quem ele deve ter recebido?


As portas chiam e mais pessoas entram e saem de uma parada para outra. Ele, por alguns instantes, comenta sobre retornar para casa. “Estou com mais cinco reais, acho que vou para casa já”, continua a conversa -- com seu possível amigo imaginário. As pessoas parecem apáticas a ele e, diante do calor que se faz em Salvador, quase não percebem que o vendedor de água é uma criança que deveria estar na escola.

O menino se aproxima das portas novamente. Em um dado momento ele me encara. Eu, diante de todas as reflexões que consigo fazer sobre a vida que ele deve levar, sequer consigo olhar de volta. Jogo meu olhar para o assoalho sujo do ônibus até que ele pare. Mais um chiado. Ele desce os degraus e agradece: “valeu piloto”. Se ele irá para casa ou para outros coletivos é a minha dúvida. Que horas ele pode ter levantado da cama hoje? Em quais condições vive?

A minha inquietação é de como vivem as pessoas como ele e que transitam por espaços comuns, mas permanecem invisíveis. Quem dera a camisa que ele vestisse fosse a da sua escola, nos faria mais felizes. 



  

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