A viagem
O
primeiro pensamento de Ariel, ao despertar de uma curta noite de sono em que a
vitória foi apenas para os pensamentos vagos, foi o de uma viagem, cujas
fotografias eram a única lembrança positiva. Nestas fotos o retrato
visivelmente manipulado dos momentos e sorrisos, que nunca foram sinceros e
reais, mas necessários ao relacionamento imaginário.
Do curso da viagem, a
fotografia era tudo que poderia controlar. Assim como as possíveis narrativas,
que disputavam atenção diante da realidade severa. Por um momento Ariel desejou
nunca ter vivido aqueles dias, cujas marcas permanecem em seu rosto, como as
linhas que tentam ser apagadas, quando passam a incomodar. As fotografias retratam
o que não existiu, talvez por isso não deseje àqueles dias outra vez.
– Vamos
viajar em dois meses. Não sei o que esperar, mas nada ainda está pronto – disse
Ariel em um tom pensativo.
– Pouco
importa. Gosto dessa imprevisibilidade. Você deveria aproveitar isso também. Estou
verdadeiramente feliz com a nossa viagem. Acho que será uma experiência que
precisamos passar.
Conversavam
e faziam planos por horas, embora nada fosse intenso como imaginado por Ariel. Na
realidade, o anúncio da viagem representava a oportunidade de mudar o clima dos
últimos meses. Nada estava claro e com a convivência tudo poderia ser
esclarecido. O excesso da companhia mantinha a instabilidade e previsibilidade
no relacionamento entre os dois.
Para
Ariel, estar com os pés fora do chão e ambos distantes de casa dariam aos
sentimentos fôlego e vida. Estariam ali, lado a lado.
Na íris de Ariel seria refletida a miniatura exata dos sorrisos. Respirariam o
mesmo ar e fariam parte de uma coisa só. Na lembrança de Ariel pareciam felizes
com a companhia um do outro, talvez essa felicidade fosse, em partes, realidade.
No entanto, era por meio de sua imaginação que o real ganhava novos sentidos. Num
dado momento da viagem, o coração de Ariel era um grande buraco de isopor e a
sua companhia da viagem, o recorte perfeito para preencher o buraco.
Embora
fosse racional, Ariel se permitia a criar cenas imaginárias, quando a viagem
ainda era um plano. Imaginou como seria ser a última pessoa a dar boa noite e
de como seria receber o primeiro abraço do dia. Por
tudo isso, ansiava que o dia chegasse, porque a viagem era o ápice para dar
forma ao que sentia.
Na estrada, ora
separados, ora enlaçados. As horas juntos até o destino final poderiam valer
mais do que a viagem inteira, mas elas não valeram. Bastou o solo ficar firme
outra vez para então as coisas se tornarem diferentes e tudo aquilo que manteve
durante meses se tornasse a sua maior prisão sem grades.
Assim foi. O tempo
passou, a viagem terminou e tudo construído nos meses anteriores se perdeu. Contudo,
ainda havia algo que não foi completamente exterminado pelas ações de quem via
tudo isso como um momento qualquer. As palavras e ações sempre se expandem na
consciência em momentos como o da noite passada, quando Ariel perdeu a batalha
contra os pensamentos. Logo tudo daqueles dias se fortaleceu e passou a
oprimir, foi quando sentiu o desequilíbrio e desejou o começo outra vez. Pedia para o tempo passar, porque nada daquilo merecia ser
vivido. O cansaço do que viveu e esperou tirava-lhe as forças necessárias para
que o tempo pudesse passar.
Meses depois as
fotografias retratam momentos que nunca existiram. O tempo passou, mas ainda assim
não é o suficiente. No começo, Ariel temia
que o tempo passasse, mas desejava que o pouco que mantinha o vínculo entre
eles sobrevivesse. No entanto, assistiu um tempo lento e severo aprisionar. O
tempo lhe faz sentir falta das suas características perdidas durante a
convivência, em favor de ganhos que não têm condições racionais de avaliar como
bom ou ruim. Quando se deu conta, já não conseguia reagir tão bem quanto no
começo de tudo. A sua tentativa era sempre a
de tentar manter vivo o sentimento que os uniu. De pensar que tudo que aconteceu
foram atos impensáveis.
– Será que você
conseguiria não ter visto nada do que se passou diante dos seus próprios olhos?
– pensou por uns instantes. – Eu não sei no que prefiro acreditar. Só posso
garantir que doeu e que as minhas cicatrizes estão abertas.
Ariel
olha com afinco para as fotografias e relembra das cenas que marcaram a viagem
que não os encaixou.
– Você era um pedaço
de papelão que tentei encaixar no meu coração de isopor. Parece bobo o que
estou falando, afinal essa conversa é imaginária, como tudo. Todas as vezes que
te retirei e coloquei de volta, o meu movimento danificou a forma que nós nos
encaixávamos. O que há entre nós hoje? – pensou tantas possibilidades, antes
mesmo de levantar da cama. Continuou: – Agora você é um papelão com pontas aparadas,
completamente deformadas. O meu coração, um buraco feito do que é resistente e
se alimenta do vital. – pareceu dura e ingênua a conclusão que chegou.