Meio-fio urbano: Futuros
No
dia seguinte ao Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) duas cenas ocasionais,
num curto espaço de tempo, ficaram marcadas e me fizeram pensar na realidade
brasileira.
Na
primeira, ao pegar o ônibus, observei quatro adolescentes indo para o estágio
com o caderno de questões do exame em mãos. Havia uma garota sentada no colo de
um dos rapazes, enquanto os outros dois estavam em pé. Pareciam otimistas e
discutiam aos berros os erros e acertos, classificando quem errou as questões
consideradas fáceis, num nível abaixo deles. Em meio às constatações projetavam
a própria vida. Pareceu possível traçar um futuro diante do que via.
A
segunda foi num outro ônibus horas depois. Um garoto com uma caixa nas mãos
entrou em silêncio. Com a boca meio aberta e olhos de quem não dormiu bem,
deixou com cada passageiro uma caixa de balas e um bilhete. Usava o cabelo
estilo moicano, boné de uma marca conhecida e sandálias Crocs. Mas sua camisa e
bermuda surradas, somados ao conteúdo do bilhete, faziam questão de indicar a
sua condição no mundo. No bilhete, o pedido para comprarmos o produto em prol
da sua sobrevivência. Chamou atenção o silêncio da cena, mas mais ainda a
característica do bilhete: repleto de erros gramaticais. Impossível não fazer
uma analogia instintivamente com a primeira cena, num dia pós-exame. Pareceu
possível traçar um futuro diante do que via.
Alguns
poderiam rir dos erros muito graves. Procurariam formas de divulgar nas redes
sociais e partilhar o quão se escreve errado no país. Escreveriam um texto
enorme indicando o quão estão à frente de muitos outros sujeitos. Essa é a
saída mais fácil e compartilhada socialmente por muitos. Mas quando peguei o
bilhete e os meus olhos encararam os erros graves, percebi que mais grave é o
contexto atrás dele.
No
itinerário de retorno para casa, passo pelo centro da cidade e observo mais
garotos com seus caixotes vendendo balas. Parece haver algo errado na função,
ou tudo está certo? Àquele discurso de que trabalhar cedo não mata se aplica a
certas crianças, mas não para outras? O quê está embutido nessas prerrogativas?
Há pensamentos de defesa? Costumo ouvir: “Pelo menos não estão me assaltando.
Antes ler e ignorar um bilhete cheio de erros de português, num papel sujo, do
que ser apontado com uma arma, perder os meus bens ou morrer”. Mas nada disso
parece verdadeiramente justo.
É
uma situação bastante delicada e qualquer julgamento parece não conseguir dar
conta de tamanha complexidade dela. Enquanto mais um garoto com seu caixote de
balas me impedia de descer do ônibus, tentava entender o quê essa analogia
instintiva quis dizer. O silêncio mais do que nunca me perturbou. Perturbou
porque fiz uma rápida varredura do nosso passado histórico, com consequências
tão latentes e visíveis no cotidiano. Bastou um pouco de sensibilidade para
inverter os papéis.
Imaginar
um futuro para esses garotos e seus caixotes pareceu uma tarefa densa. Engoli
seco as minhas possíveis constatações. Há um conjunto contraditório nestas
cenas: de um lado quem estuda, do outro quem precisa sobreviver. Quem vence
esse desafio diário? Os que estudam sobrevivendo? Antes de apontar qualquer
resposta simplista, é justo lembrar que em meio a tudo isso existe desejos latentes
de consumo, fatores econômicos e políticos, experiências sociais e
preconceitos. Em adolescentes ou crianças, as consequências são ainda mais
expressivas. É também nestes dois quadros que consigo ver as taxas de
desemprego entre jovens -- mesmo com anos de estudos -- a precária máquina do
ensino e dos modelos de ingresso à vida adulta, que não dão conta da nossa
realidade e precariedade.
Se
quem estava atrás de mim ria dos erros e fazia pouco caso, procurando formas de
limitar o intelecto do garoto, não conseguia parar de pensar no que significava
àquele bilhete. É a salvação de um lado -- para uma parcela, que não se verá
tão ameaçada pelas possíveis abordagens dos garotos -- e a falência do outro,
de um projeto de futuro tão dissolvido, disperso e injusto.
Talvez,
se ele entrasse gritando ativasse o que muita gente usa: o filtro da desatenção
em prol da zona de conforto. Mas foi justamente através do silêncio que ele
marcou. Agiu desta forma e permanecerá nela, diante de quem poderia lhe oferecer
uma condição de vida melhor. A sua etnia, contexto social e idade, tornam tudo
ainda mais injusto.
Ainda estou com a garganta seca, com
tantas observações. O escândalo da euforia da primeira cena havia me
incomodado, porque desejava o silêncio da viagem. Mas o silêncio da segunda me
fez refletir numa parte de uma cadeia injusta, que passamos perto diariamente.
São realidades opostas num mesmo espaço, sem muitas resistências, entregues aos
meios-fios das grandes e pequenas cidades. Talvez ali possam se tornar ainda
mais visíveis. Quem sabe não consigam nos tocar para questionarmos que modelo
de sociedade mantemos. Assim como o quê está embutido na vontade e necessidade
de sobreviver em prol de qualquer expectativa de futuro. ∞
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