Voando por universos
Nunca entendi o medo que as pessoas depositavam
no senhor que vivia aqui na rua. Falavam pouco com ele, imaginavam que ele
poderia fazer mal. Por causa disso, vivia sob constantes ameaças, caso alguém
passasse por perto dele. Sem perceber, acabei adquirindo um pouco de medo.
Os garotos e garotas da rua viviam fazendo
piadas sobre ele. Enquanto julgavam, tentava entender como ele chegou ali, as
suas roupas surradas, a barba feita quando podia ser feita. Tudo era um tanto
curioso e ao mesmo tempo triste. Ele sempre pareceu solitário. Imaginava o que
se passava em sua vida. Cada pessoa é um livro, e o livro dele era misterioso.
Isso aguçava a minha mente.
Quando comecei a voltar para casa sozinho, já
com a minha chave da porta, passei a observar mais àquele senhor. Enquanto
todos corriam de medo, não conseguia compreender qual o verdadeiro motivo para
tal -- se é que existia -- e talvez por isso, os meus medos não tinham força
para me fazer correr.
Distraído e um tanto desastrado, num dia
qualquer esqueci a minha chave de casa. A
porta estava fechada. Não havia ninguém que pudesse abri-la. Tentei ir para
casa dos vizinhos, mas todos pareciam imersos a outra coisa, nenhum deles sequer perceberiam que eu estava ali.
Pelo vidro da janela da minha casa, vi o
reflexo da praça e resolvi aguardar ali até que alguém pudesse chegar. Pensei
em ler, em escrever, mas decidi que precisava ficar sentado observando com os
meus pensamentos -- naquela época não tinha ideia de que os meus pensamentos
poderiam mudar muitas coisas, mas ainda sim, continuei sozinho observando e
pensando. De repente escuto uma voz rouca e uma mão repousar sob o meu ombro.
Tive medo, mas não me apavorei, era o senhor que todos falavam.
II
Tentando ser simpático, o cumprimentei. Ele me
perguntou por que eu estava sozinho e onde estariam os meus pais e os meus
familiares naquela hora da tarde. Expliquei que estavam no trabalho e que tinha
esquecido a chave da porta. Abaixou a cabeça -- como se pudesse encontrar
alguma lembrança -- e disse: se quiser posso ficar aqui um pouco com você.
Por um momento pensei: minha mãe não aprovará
essa situação, tenho medo do que podem achar ou do que pode acontecer. Mas
percebi que àquele senhor não parecia perigoso, muito pelo contrário, seu olhar
era amistoso e gentil. Aceitei a sua companhia e começamos a conversar.
Ele me perguntou qual é o meu desejo e o meu
sonho impossível. Eu disse, como uma criança que vê um pássaro no azul do céu:
o meu desejo é poder voar um dia, o meu sonho é viajar por universos, mas isso
parece impossível -- disse abaixando a cabeça ao senhor.
Tudo que dizia parecia ser analisado por ele.
Com um sorriso sincero ouviu o que não costumava comentar com os garotos de
minha idade. Aprendi desde cedo, que o meu sonho pode ser objeto de riso para
os outros, mas também pode ser o que preciso para continuar a fazer o que faço
e enfim ser feliz.
Depois de me ouvir fantasiar de como seria
viajar e voar, o senhor olhou para mim como se àquilo que disse fosse material
e palpável. Com a sua voz rouca disse: hoje você diz que não pode, mas algum
dia perceberá o que pode fazer.
Ao ouvi-lo, sinalizei que não compreendi o que
quis dizer, quando enruguei a testa. Ele completou - colocando a mão nas minhas
costas dizendo: aqui atrás você tem asas, colocando a mão no meu peito
continuou: aqui dentro tem o que movimentarão elas e permitirá voar para o
lugar mais alto que possa imaginar. Aqui, na sua cabeça, encontrará os mapas
para alcançar os universos que precisa ou deseja conhecer.
Fiquei confuso e confesso que tentei ver se
havia asas, ou ao menos indício delas, como a criança que procura pela
materialização fácil. Nada encontrei. O dia foi terminando e meus familiares
chegando, me despedi do senhor e pedi que pudesse me explicar no dia seguinte à
maneira de ativar essas asas. Precisava
voar o quanto antes.
Naquela noite dormi com aquelas palavras em
minha cabeça. O que um garoto de oito anos poderia fazer se pudesse voar?
Imaginei vários momentos, diversos locais e acabei vencido pelo sono e pelo energia
gasta para tentar desvendar o mistério.
III
No dia seguinte, procurei o senhor por todos os
lados, mas não o encontrei. Fiquei decepcionado e triste, já que desejava a
todo custo à fórmula para voar. Perguntei os meus amigos, aos meus familiares,
mas nenhum deles conseguiu me dizer a famosa fórmula. Diziam até que estava
louco. Confesso que fiquei frustrado e por um tempo não suportava nem olhar
para o céu, pois sentia inveja dos pássaros voando naquele meio tão
apaziguador. Sentia inveja da liberdade em navegar do alto e por universos.
O tempo passou e fui amadurecendo. Apesar de
nunca mais ver o senhor, fui tentando com diversas maneiras fazer essas asas
funcionarem, mas não consegui. Resolvi esquecer de uma vez esse sonho de oito
anos. Digamos que fui viver um pouco mais. O tempo foi passando mais e eu
crescendo. Ganhei responsabilidades, passaram a me julgar mais. O que antes não
existia passou a existir. O tempo se tornou outro e nem percebi que esqueci o
meu sonho de oito anos.
Cheguei um dia do trabalho um pouco preocupado.
Meus pensamentos confusos me deixaram com um pouco de medo. Deitei na cama e
fechei os olhos. Tentarei descrever com palavras o que senti, mas não sei se
elas são adequadas, diante de tamanha energia e singularidade.
Senti próximo ao coração um formigamento e num
mesmo instante o sangue bombeado pareceu mais vital. Apreensivo, me encolhi e
abracei o meu travesseiro, olhei para janela e vi o céu com suas estrelas
próximas. Sentimento estranho. Àquela janela parecia um
quadro, talvez um quadro que me lembrasse de outros tempos.
O que sentia no peito era algo que jamais senti
em qualquer outro momento. Percebi que alguma coisa me fazia bem, ou melhor, a
soma de coisas. Flashes vieram a minha mente e lembranças de momentos
agradáveis piscaram, como um curto-circuito. Lembrei-me das coisas que costumo
pensar antes de dormir e das coisas que já acordo pensando. Umas tão pequenas e
simples, mas capazes de trazer algo grande e inexplicável.
Àquele sorriso do meio do dia, que é capaz de
me fazer bem a qualquer momento, uma lembrança saudável de vivências passadas,
um amor. Me senti leve, estaria apaixonado por alguém? Estaria feliz com alguma
coisa? Talvez um pouco dos dois, mas nenhuma definição importava, porque quem
sentia era eu. E não havia nenhuma palavra no mundo que pudesse representar a
experiência de voar. Viajar nos pensamentos, me envolver, me entregar. Uma voz
rouca me disse: você conseguiu.
IV
Ainda sem entender, cheguei a pensar que estava
sob efeito de algum medicamento. Mas fui concluindo, que o que àquele senhor quis
dizer é que posso fazer o que quero. Percebi que me encolher de felicidade
deitado na cama e com os meus pensamentos me deixava leve, porque sabia que
podia sempre ter isso por perto e muitas coisas mais. A liberdade de viajar por
universos é justamente a liberdade em ser o que realmente sou.
Quando sentia o meu coração bater mais forte e
ao mesmo tempo devagar, com um frio na barriga e uma leveza estranha, àquilo me
fazia bem. Fui voando e voando sem perceber. Quando me dei conta estava no
lugar mais alto que um dia imaginei chegar. Estava em um ambiente tão bom quão
aqueles que os pássaros voavam. A paz era a mesma e o desejo de continuar
também. Percebia aos poucos que o que me faz voar é perceber e sentir as coisas
que estão a minha volta e o seu verdadeiro sentido em minha vida, no meu
aprendizado e crescimento.
Sentir que gosto do que faço, das pessoas e que
elas existem e estão ao meu lado, já foi o suficiente para voar. Senti que sou
amado, não importando por quantas pessoas. O que é belo é o que há dentro do
coração, isso é o que realmente importa.
E os universos que desejo conhecer?
Ah, depois de descobrir o que é capaz de me
fazer voar, o universo pareceu fácil. Descobri que o universo é justamente o
que aprendo e exploro nas outras pessoas. Com elas vou descobrindo coisas que
ainda não vi, ou que vi, mas observaram de outra forma. Cada pessoa é um livro
e como todo livro bom, posso aprender o que preciso.
Instantaneamente percebi que já viajei por
universos muito cedo e que aquela conversa com o senhor, que tanto abominavam,
foi também uma viagem a outro universo. Conheci a importância e o poder de
sonhar. A importância de avançar barreiras das limitações humanas.
Hoje entendo que tudo tem o seu tempo para
chegar e ser experimentado. Se agora consigo voar é porque descobri o valor dos
meus sonhos, das pessoas, dos desejos e dos amores. Conquistei o valor do
singular.
Se agora percebo que posso viajar por universos
é porque estou cada vez mais me aproximando das pessoas certas. Se elas são
boas ou não, não sei. Mas o que posso garantir é que elas me darão algo que
poderei aproveitar e levar comigo. Seja através de relacionamentos e vínculos,
seja pelo que sou capaz de dar e sentir.
Pode ser que àquele senhor, que nunca mais vi,
tenha tido justamente esse papel: alertar-me de que por mais que tudo conspire
para desistência, não posso fazer isso porque é algo que motiva para continuar
e que o meu mundo é o meu universo. Esse universo é imensurável para viver
apenas em uma parte dele. Àquele dia que esqueci as chaves da porta, e vi pelo
reflexo da janela a praça que parecia banal, percebi que aquele foi o dia que
jamais esquecerei na vida.
Me sinto orgulhoso e feliz por não ter tido
medo daquele senhor, diante de tantos comentários que já tinha ouvido, acho que
ver as coisas com os próprios olhos é sempre o melhor. Tudo bem, foi um risco.
Mas em todo risco há a chance para coisas novas e boas acontecerem. Pode ser
que uma coisa se perca no meio do caminho, mas se algo se perdeu é porque o que
virá é suficiente para completar este espaço vazio.
Assim vou vivendo, voando e andando com o que
tenho e descobrindo com o que posso ter. Viajando por universos no céu azul,
consigo alcançar o inimaginável. Com os olhos brilhando, se renovando, como as
estrelas que nunca apagam, enquanto a observamos.
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