Café expresso

| foto: oticacotidiana feito com IA


— Por favor, eu gostaria de tomar um café expresso, puro e sem açúcar.

— Bem-vinda a SmartCoffee, está um lindo dia hoje, não é? Vamos começar... por favor, aproxime o smartphone do leitor para que eu possa seguir com seu pedido e pagamento — uma música suave de jazz toca aguardando a ação.

Lurdes aproxima o dispositivo e sente a familiar leve vibração nele. Ela ajusta o vestido e puxa conversa com um homem que está atrás dela.

— Não vejo a hora de tomar um cafezinho. Minha cafeteira smart não fez café de jeito nenhum para mim hoje, acredita?

O homem reage com indiferença, dando de ombros e com os olhos fixos na tela do celular. Ela sorri de forma forçada diante da ação do homem e vira-se de novo para a máquina.

— Dados lidos. Excelente escolha, senhora Lurdes. Nossa IA vai ajustar seu pedido conforme seus dados para atender melhor ao seu perfil.

Ela lança um olhar nervoso para a fila que se estende. Suspira e insiste:

— Não, eu só quero um café expresso, puro e sem açúcar, sem firulas ou invenções. CA-FÉ PU-RO, apenas.

— Café puro é tudo de bom mesmo, não é? Mas seus dados recentes mostram que sua conversa com o Eduardo ontem, às 23h48, foi intensa, você falou ‘ai, amigo, eu não aguento mais’, dezesseis vezes em dez minutos, fora as mensagens rápidas, pulsação elevada... Isso indica uma possível ansiedade. Um café pode intensificar seu estado de nervosismo. Que tal um descafeinado com leite?

Ela cerra os dentes, irritada. Os outros clientes começam a murmurar entre eles que ela está demorando demais na máquina.

— Eu já disse: só quero meu café, ok? Deixa que minha vida eu cuido!

— Assumir riscos é parte da personalidade de uma ariana. Entendi seu pedido. Café expresso sem açúcar e puro é realmente uma boa escolha. Porém, suas últimas medições de sono indicam menos de quatro horas dormidas, além de uma piora nos indicadores de gastrite. Recomendamos um chá gelado, talvez um de camomila para acalmar.

Lurdes respira fundo, tentando se controlar enquanto sente o calor subir pelo corpo.

— Eu quero um café expresso e sem açúcar!

— Café expresso e sem açúcar é um pedido comum para moradores dessa região. É uma ótima escolha. Me desculpe a confusão, vou refazer seu pedido.

Lurdes lança um leve sorriso para o homem atrás dela, mas seu olhar revela tensão. A máquina emite um som baixo de processamento, misturando-se ao jazz suave ao fundo. A demora faz seus nervos se inflamarem.

— Sabe, Lurdes... é curioso que a prima da sua avó materna também insistia muito em café forte. Infelizmente, ela sofreu um infarto aos 56 anos, possivelmente devido a crises de ansiedade não tratadas. Estudamos seus dados de redes sociais e vimos um padrão de comportamento semelhante. Não prefere uma água com gás? É refrescante para esse lindo dia de sol e sem contraindicações.

O rosto de Lurdes fica mais vermelho, os olhos inchados pela insônia, o som do jazz que vinha da máquina zumbia irritantemente nos ouvidos de Lurdes. Ela começa a dar chutes na máquina.

— Pela última vez, EU QUERO UM CAFÉ EXPRESSO, PURO, SEM AÇÚCAR, E BEM FORTE!

— Entendido. A urgência é clara, não precisa me bater, somos uma sociedade civilizada e tecnologicamente bem desenvolvida. Por favor, aproxime novamente seu smartphone. Que tal começarmos de novo?

Lurdes o faz, ofegante, enquanto a máquina murmura novas leituras.

— Sabe... café expresso e sem açúcar é realmente uma escolha popular. O calor e o sabor intenso do café estimulam ondas de prazer no cérebro. Mas, revendo seus dados, vejo que um café agora pode prejudicar seu próximo ciclo de sono e agravar alguns indicadores. Que tal uma água natural, sem gás, sua gastrite vai te agradecer.

Ela bate com a mão no leitor de pagamento.

— Eu quero a p*** do meu café!

Os demais clientes começam a olhar a hora nos seus relógios digitais e começam a resmungar pela demora. Alguns saem da fila com a notificação de urgência para retornarem ao trabalho.

— Senhora Lurdes, infelizmente, o pedido foi cancelado. Não se preocupe: seu terapeuta foi notificado e deverá entrar em contato em até quinze minutos. Também acionamos o serviço de emergência para conter seu possível surto, considerando os níveis de adrenalina detectados. Por favor, aguarde atendimento.

Lurdes puxa o telefone com violência, guarda na bolsa e sai correndo. Em desespero, olha para trás, sentindo-se perseguida. Tropeça em uma esquina e avista um vendedor de café com um carrinho de madeira. Lá, há opções simples de café puro, forte, descafeinado, com ou sem leite, servidos em uma garrafa térmica.

— Por favor, um café puro e sem açúcar!

— Claro, são R$ 8,90. Vai pagar como?

— Cartão de crédito.

Ela pega o cartão, aliviada. Aproxima do leitor e uma mensagem aparece:

TRANSAÇÃO NEGADA.
HOJE NÃO É UM BOM DIA PARA VOCÊ TOMAR CAFÉ, LURDES.

Ela esbraveja, revira a bolsa em busca de moedas, mas não encontra nada. E, nesse instante, uma ambulância estaciona ao seu lado. Seu celular começa a tocar.

— Lu, fique calma. Vamos conversar sobre isso — diz o terapeuta da moça na linha.

— Eu só quero um café! Que inferno!

— Café está fora de questão, querida. Nossos sistemas informaram a situação. Vamos levá-la para uma avaliação médica. Seu rastreamento foi ativado, e a equipe está a postos para garantir sua segurança.

O grito dela corta o ar enquanto tenta fugir mais uma vez, com os socorristas atrás. Ela finalmente alcança um beco e se esconde, jogando o celular em um latão de lixo antes de sair pela rua oposta. Desesperada, Lurdes procura uma alternativa ao seu redor caminhando. Ela ajeita o cabelo, controlando a respiração como se tivesse acabado de sair de uma aula de ioga, ao avistar uma livraria. Ela escolhe uma mesa no fundo, onde se sentia segura e invisível. Liga o computador e suspira, satisfeita. Afinal, só queria um momento de paz e, claro, um café sem firulas.

A livraria é um refúgio de tranquilidade. Prateleiras de madeira escura, um aroma sutil de café e uma playlist de jazz suave, este feito por humanos, compunham o cenário, como se o mundo caótico lá fora fosse apenas uma lembrança distante. Lurdes se acomoda e uma funcionária se aproxima.

— Deseja pedir algo?

— Vou querer um pão de queijo e um café expresso, puro e sem açúcar — responde, recuperando seu tom de voz usual, segura de que aqui, ao menos, não haveria interferências.

A funcionária hesita, dando uma rápida olhada para a tela do computador de Lurdes.

— Tem certeza?

— Lógico que sim, por que não?

— Seu computador moça...

A funcionária reage, com um sorriso meio sem jeito, apontando discretamente para o alerta pulsante: PACIENTE EM SURTO. EM HIPÓTESE ALGUMA SERVIR CAFÉ EXPRESSO SEM AÇÚCAR.


EM ALTA...