Pague pelo amor

Por nos entregarmos a alguém, este nos deve sentimentos?

você deve 10 meses 9 dias e 15h de amor, aqui está o boleto | foto: pixabay


Você amou. E como amou. Amou tanto que algo em seu íntimo doía, como se fosse a própria morte chamando, ao sentir que esse amor poderia ruir. E esse amor ruiu, findou. Agora, por instinto de defesa, você realmente acredita que o seu companheiro (a) lhe deve amor, em função de tudo que sentiu e viveram. No entanto, será que amar tem a ver com cobrar dos outros algo que queríamos para nos preencher? Ou, melhor dizendo: para nos fazer escapar de algo que precisaríamos superar, mas ainda não conseguimos? Para suprir as nossas necessidades individuais afetivas?

Primeiramente, nada tem a ver com não ter responsabilidade afetiva. Acredito que se trata de entender que as pessoas lidam com os sentimentos de forma muito particular. Nós conhecemos apenas uma parte da pessoa com quem dividimos ou construímos algo. Ela tem tantas outras que agora podem lhe parecer inexistentes ou sem relevância. Mas não podemos deixar de entender que cada um de nós tem a própria história, traumas, ciclos sociais, amigos e família. Tudo isso nos faz seres únicos e complexos de sentimentos e formas de viver e experimentar o mundo. Acreditar que, por amar intensamente e viver uma parte desse sentimento com alguém (em um relacionamento), significa conhecimento concreto e controle, é um assombroso engano. E digo mais: você vai sofrer. Não se pode aprisionar as pessoas quando se trata de amor.

Segundo, tem mais a ver com respeito. Respeito às individualidades e limitações de cada um. Como disse, cada um de nós é um universo complexo que nem nós mesmos podemos dar conta. Então, querer que o outro esteja para nos servir e preencher todas as lacunas de nossos traumas e expectativas, quando se trata de amar, é uma punição e tanto com a outra pessoa, que pode nem querer ou saber disso. Foge do que acredito ser amor.

o outro também sabe da responsabilidade que você transferiu para ele? | foto: pixabay

E não. O que você viveu não se apaga ou tem menor valor só porque terminou e a pessoa seguiu adiante sem você. Ela não te deve nada e não há sentido algum cobrar das pessoas algo que elas podem nem saber que precisam lhe entregar. Porque, novamente, é a sua expectativa, baseada em seus traumas e necessidades afetivas, que induzem a essa noção de dívida.

Não é porque acabou e a pessoa seguiu adiante e não atendeu as suas expectativas que não existiu (ou exista) amor. Cada um de nós responde a esse tecido dinâmico que é viver, de formas que nem nós temos controle. Nesse meio de campo, pessoas e momentos são deixados para trás e ficam registrados no tempo. Por estarem lá, seguras no tempo e na memória, outros relacionamentos vão se firmar e, inevitavelmente, o que era presente vai se tornar passado. Contudo, não é porque passou que quer dizer que não tenha tido valor.
 

A gente sofre muito à toa querendo que as pessoas, de certa forma,
paguem (isso mesmo, o velho ‘retribua’) algo correspondente ao que sentimos e da forma que imaginamos que tem que ser, esta, baseada em nossas expectativas. Mas é praticamente impossível que algo de bom surja desse desejo, porque o que está no outro é um universo desconhecido. Isso quer dizer que as pessoas devam ser frias e não demonstrarem sentimentos, em nome da liberdade? Não, longe disso. Amor é liberdade, é respeito, carinho e conexão. Pelo menos é o que eu acredito. Não é preciso que alguém cumpra todos os seus desejos e preencha o vazio e anseios provocados pelos seus traumas e ausências de experiências passadas para significar amor. Também não quer dizer que por respeitar a individualidade e forma de amar do outro, signifique que não deva existir responsabilidade afetiva entre os dois.

A responsabilidade afetiva está dentro da ideia de amar o outro como ele realmente é. Se há respeito e sinceridade nos sentimentos, sem cobranças relacionadas aos vazios e traumas individuais, inevitavelmente há responsabilidade afetiva aí sustentando tudo. Em outras palavras: há condições reais de criar algo saudável a partir dessa conexão.

Assim, acredito que quanto mais paramos de cobrar das pessoas sentimentos idênticos ao que os nossos vazios impõem, mais nos tornaremos mais felizes e teremos relacionamentos mais saudáveis. Isso tudo independe do formato das relações. Monogâmica ou poligâmica, o respeito pelo espaço e forma de amar do outro tem que existir.
 Quando se conecta com o outro, não se pode exigir dele sentimentos que estejam faltando em nós mesmos. Não é justo para ninguém carregar as nossas angústias e dores que tivemos ao longo da nossa própria trajetória.

amor combina com liberdade | foto: pixabay

Portanto, da próxima vez que achar que alguém lhe deve amor, se pergunte por que alguém lhe deveria amor. E mais: se esse tal amor que lhe devem é moeda de troca para preencher vazios e traumas passados. Não se pode obrigar a sentir e nem julgar como o outro sente. O respeito a individualidade é um passo necessário para não sofrer. Dê amor sem pensar em como o outro vai lhe retornar. E se o outro não valorizar, não sinta culpa por isso. Siga adiante. Nossa cultura nos faz sentir vergonha pelas relações e entregas amorosas que não dão certo, mas acredito que esse pensamento não nos faz bem e nos deixa com ainda mais traumas. Também nos esvazia e amedronta a ponto de secarmos e não termos mais nada a oferecer ou construir com o outro. Não há perdedor ou vencedor, se a tentativa foi de amar e ser amado. Para que nos serve o orgulho?

Se quer amar, ame. Se o outro te ama, ótimo. Viva esse amor pelo tempo em que ele existir. Sem obrigar o outro a cumprir protocolos sentimentais e nem de suprir e corrigir os traumas de relações passadas. Não é justo. Liberte o outro da dor que você mesmo precisa se libertar. Tome consciência dos seus traumas antes de repassá-los e vice-versa. O que vale para um, vale para o outro. Não aceite esse lugar que lhe colocam, nem as responsabilidades pelo que você não tem controle.

Amar, acredito, também é sentir paz no coração sendo o que é e aceitando o outro como ele é, para enfim dividir e construir uma história de felicidade com quem se está amando.

Sem dívidas e boletos sentimentais, amar no sentido amplo: com paz no coração sendo como é.

 

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