Faz de conta escuta os outros?

Ouvir o outro é abrir-se, conectar-se, colocar-se no lugar de quem está dividindo algo. Nossas experiências e interações nesse mundo hiperconectado nos faz acreditar que acenar com a cabeça e olhar para o outro é ouvir, no entanto, essa experiência é muito mais complexa. Pera, me perdi, não ouvi e nem entendi. Repete. O que foi que você disse por último mesmo?


você abre os seus sentidos para os outros de verdade? | foto: pixabay


SPOILER: Ok. Vamos por partes, porque talvez esse texto seja um tanto difícil de ser compreendido. Não pela complexidade das palavras, mas por talvez tocar em algo que pode ser que você não esteja lá tãããoo preparado assim. Aqui só tem obviedades, é provável. No entanto, acredito no seu bom senso e que vá conseguir seguir adiante e olhar para cada uma dessas mensagens com atenção e se questionando o que há delas em você. Dica: se liberte do ego e da posição de superioridade para seguir adiante. Aqui todos nós estamos aprendendo. Isso, aprendendo de verdade e não simulando essa experiência.

 

A pandemia, isolamento e tensão pelo coronavírus tem acelerado e exposto algumas de nossas fragilidades e desafios do mundo hiperconectado e volátil. Esse ‘novo normal’ – expressão que detesto e vocês bem sabem –  dá sinais de que agora vivemos a consumação de episódios passados que nos transformaram no que somos hoje. Desde que os nossos sentidos passaram a ser mediados por próteses externas, como smartphone, internet e redes sociais, tem sido difícil perceber nas pessoas a real abertura para ouvir. E isso é preocupante. Porque como a humanidade se comportará mais adiante, se todos nós perdermos a capacidade de nos ouvirmos de verdade? E como será quando nos rendermos a sermos apenas grosseiros e apáticos com os outros e a tudo que não concordamos ou queremos acreditar?

Ouvir de verdade é um processo muito mais complexo
, apesar de simples, do que acreditamos hoje. Calma lá, não estou falando do seu smartphone que lhe escuta (às vezes até melhor que os outros), mas de você, cidadão do mundo. Na sua real dificuldade em se conectar com o outro e desligar-se de si por alguns poucos segundos. O que o outro tem a dizer é sempre menos importante do que você tem?

Nós somos seres sensitivos, emotivos e tudo em nós comunica, então isso meio que abre uma brecha para derrubar àquela sensação falsa de que se sabe escutar o outro, porque
o outro sente quando está sendo escutado de verdade. Nesse processo, é muito comum que tenhamos a ilusão de que sabemos ouvir o outro, porque nos calamos, balançamos a cabeça e olhamos para a pessoa por alguns instantes enquanto ela divide algo conosco. No entanto, internamente, sua cabeça vaga por mil e uma coisas, a sua atenção é dividida com outras ou mesmo há o desinteresse e dificuldade em ouvir e se colocar no lugar do outro.

não adianta acenar com a cabeça, o outro sempre percebe quando está de fato sendo ouvido. é parte da complexidade em ser e se relacionar com humanos | foto: pixabay


Você não consegue se conectar, porque simplesmente não desenvolveu essa habilidade ou porque tem perdido ela. Quantas vezes você se pega dizendo:
‘repete o que você falou, não entendi esta última parte?’ É mais um sintoma de que não se estava escutando totalmente e que parte dessa emulação se perdeu e precisa de reforço. É meio duro perceber que essas falhas estão em nós mesmos, porque cada dia que passa somos levados a ignorar o outro e sobrepor-se sempre. No isolamento da pandemia, vejo sinais cada vez mais fortes de tudo isso.

Mas você então pode falar que é exagero meu, que é um excelente ouvinte e que consegue atender as pessoas muito bem. No entanto,
aqui é que mora o perigo, porque pode não ser tão verdade assim. Pare e pense (primeiro se liberte do ego e talvez da arrogância): como será que as pessoas me reconhecem? Como àquela pessoa que ouve ou àquela que corta os outros para impor suas falas, porque subliminarmente considera elas mais importantes e urgentes para serem faladas, capaz de atropelar e cortar a abertura que o outro tanto procura em nós? Cortar o outro é cortar a sua linha de pensamento, embaralhá-lo e conduzi-lo apenas para o que você tem a dizer. Percebe como é violento silenciar o que o outro queria dividir?

E se você não corta as pessoas, como é que você escuta? Qual a sua expressão facial? Você se mostra interessado (ou realmente é?), consegue se colocar no lugar de quem está dividindo impressões com você, consegue dar a verdadeira atenção? E não.
Não é porque você tem mais ou menos idade que você tem razão. Nossas experiências de vida e realidade nos colocam sempre no lugar de que é possível aprender com a outra pessoa. Então, o primeiro e mais duro passo, talvez seja de libertar-se da própria arrogância de que sabe demais e que os outros sabem menos, seja pela idade que tem ou pelo conhecimento que adquiriu. Empatia não tem a ver com ter mais ou menos idade e ela não se emula, como já foi dito: sabemos quando estamos sendo ouvidos e quando o outro está nos acolhendo por alguns minutos.

ouvir o outro é se abrir por completo, você ainda consegue? | foto: pixabay

Não é a tarefa mais fácil reconhecer que não se escuta. É quase uma ofensa ser reconhecido no grupo como alguém que não escuta de verdade o outro. Nessa era de redes sociais, não é nenhuma novidade aquela percepção de que todo mundo quer falar, mas ninguém quer ouvir. Todo mundo quer ser protagonista da narrativa geral, mas nunca ser o figurante. O que se escuta em meio a ruídos e mais ruídos? O que se escuta entre os intervalos dos próprios ruídos? É difícil se enxergar, se deixar tocar, principalmente por não estarmos mais tão dispostos a ouvir, mas só falar. Ora, porque nos consideramos tão importantes?

Esse texto está longe de ser considerado dono da razão, mas é mais uma provocação para que dê um pontapé e saia um pouco da zona de conforto e se pergunte como tem sido escutar o outro.  Um dos processos mais violento para nós, seres políticos e de emoções é o silenciamento e a dominação.


Ouvir o outro bem significa autoconhecimento, equilíbrio e um tanto de autoestima. Porque afinal de contas, deixar de ser protagonista por alguns instantes e se colocar no lugar de que vai aprender mais com o outro, requer se desfazer do ego e inseguranças para reconhecer que há algo novo sendo dito e que o seu pensamento ou noções podem estar erradas. É como eu disse no começo: esse texto parece fácil e até mesmo óbvio, mas se você se aprofundar um pouco mais vai perceber que a sua capacidade de ouvir pode não ser como realmente acredita. Vá fundo, se escute um pouco mais e avalie como faz com o outro. Inclusive, a dificuldade de escutar talvez seja reflexo da desconexão real consigo mesmo.

Repete o que você falou, não ouvi e nem entendi.

E assim continuamos a fazer de conta que estamos escutando. Você escuta de verdade ou está fazendo de conta porque convém hoje e agora? 


 

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