Você nasceu de chocadeira?

Encarando as origens, família e ancestralidade

Bruno Bispo*
redacao@oticacotidiana.com


Tem uma frase da minha avó de que sempre gostei muito. Achava engraçado, quase pitoresco. Sempre que algum dos guris – ou até dos adultos, mas, para ela, grandes crianças – contrariava a mãe, ou devesse satisfações à mãe por algum motivo, dentre outros contextos, ela questiona, de forma incisiva: “por acaso, você nasceu de chocadeira?” 

| foto: pixabay


A primeira vez que me lembro ouvir esta máxima, ou pelo menos de ter refletido sobre, foi quando ela recebeu a notícia de que um de seus netos era ateu. Naquele momento, a frase não fez muito sentido para mim. Só achei engraçado. Depois, em outros contextos, principalmente fazendo referência às nossas mães, ouvi a pergunta e aos poucos fui fazendo algumas pontes.

Minha avó é a matriarca e centro da família. Constituiu prole de 6, todas mulheres. Nasceu na zona rural de uma cidade pequena, sem luz elétrica, carregava água em baldes na cabeça. Jovem, trabalhou como charuteira. Depois, atrás do balcão de um armazém, criou e proveu os estudos que não teve para suas seis filhas. Da primogênita, que saiu de trás do balcão de armazém para a frente dos quadros de giz, eu nasci. 

Família Ramos, início dos anos 1970 | foto: arquivo pessoal/Bruno Bispo


Posso concluir que venho dessa força. E refletir, então, de onde viemos, nos confronta com a nossa ancestralidade. Se não nascemos de uma chocadeira, que aquece os ovos e prepara-os para se romper de forma instintiva ou até mecânica (você sabia que uma chocadeira elétrica pode fazer eclodir até 240 ovos, com controle de temperatura e de data de eclosão?), nascemos de um ventre – no sentido real e figurativo.

Conhecer o contexto de onde partimos é essencial para conhecermos a forma que se deu nossa construção como pessoa e de que forma isso influencia e determina pensamentos, convicções e comportamentos. Herdamos, através dos nossos pais, avós, bisavós e de todos os nossos antepassados o DNA que nos faz humanos do jeito que somos hoje. 


Luedji Luna resgata a ancestralidade em ‘Notícias de Salvador’ | foto: YBmusic/reprodução


E a ancestralidade vai bem além disso – carregamos uma força que vem de dentro, uma energia vital, além de memórias afetivas que honram, fortalecem e situam nosso lugar no mundo. Jurema Werneck eterniza no seu livro “O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe”. De fato, para que eu esteja aqui, quantos charutos foram enrolados, quantos palitos de giz foram riscados até o pó?

A provocação de vovó serve para nos ambientar. É quase um “Você sabe de onde veio?” E, sem saber de onde viemos, não há conhecimento de quem somos, uma vez que somos construídos a partir dos que nos deram espaço; e, portanto, não estamos seguros para onde vamos. Tem uma música de 2012 que gosto muito, chamada “Roots before branches” (composta por Adam Anders e Nikki Hassman). Pra quem ainda não teve a chance de ser meu aluno de inglês – risos – significa “raízes antes de galhos”. 

Nossos passos vêm de longe...| foto: pixabay


É isto. Outono é renovação: finque suas raízes, fortaleça os galhos e – por mais que seja difícil agora acreditar – a primavera chegará.

Ou você, por algum acaso, nasceu de chocadeira?



*Bruno escreve quinzenalmente nas terças-feiras.



Bruno Bispo
Preto, baiano, filho de classe trabalhadora. Amante de livros, cerveja e sorrisos.
Estudante de medicina, professor, 'escrevedor', pagodeiro e tantos outros.

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