O mito da entrega e produtividade na pandemia

Vá com calma ao colocar como obrigação certos hábitos e respeite os seus limites. Não estamos vivendo uma grande colônia de férias, estamos enfrentando uma pandemia com consequências ainda desconhecidas... 

produtividade a todo custo? de onde vem isso? | foto: tempos modernos -  ‎Charlie Chaplin / reprodução

Dia desses conversando com amigos, entramos em um dos tópicos da pandemia do covid-19 mais conflitantes com os padrões de vida acelerados que levávamos e que agora se reflete na rotina do confinamento. Para além do medo e a incerteza de como serão as coisas e de como sairemos desta pandemia, volta e meia vejo no meu feed, pessoas de todos os níveis de instrução, incentivando de forma simplista (e por vezes até exagerada) a aumentar ou manter a produtividade durante a quarentena. Em outras palavras, a imaginar uma situação de normalidade para você não ficar em casa sem fazer nada e, por consequência, se sentindo inútil.

Evidentemente, não há nada de errado em usar o tempo livre para algo produtivo ou que goste, tampouco incentivar as pessoas para se encontrarem e serem melhores. No entanto, precisamos ir com calma. Cada um de nós tem uma dinâmica e ritmo diferente para fazer ou lidar com as situações. O que cabe para mim pode não funcionar para o outro e vice-versa. Para além do óbvio, sim, vivemos uma época em que às vezes precisamos reafirmar o óbvio até que as pessoas assimilem, é preciso estar atento a essa avalanche de atividades recomendadas sem o mínimo de critério ou responsabilidade, apenas para cumprir tarefa e reforçar a tese de que precisamos produzir muito o tempo inteiro.

Não bastassem as notícias ruins e preocupantes sobre a pandemia, o despreparo do Governo Federal em encarar a situação com a devida gravidade, todos os dias milhares de coaches de conveniência, isto é, pessoas sem qualquer formação e baseadas no mais puro achismo, se metem a dar conselhos para a sua massa de seguidores (pequena ou não), mostrando o quão produtivo e funcional é a sua quarentena e de como seu estilo de vida é o melhor a ser seguido, tudo validado pelo número de seguidores, como se estes indicassem real condição de interferir na vida alheia.

Dos discursos de autoconhecimento instantâneo, esvaziados de profundidade e realidade, às atividades de produtividade e exercícios físicos milagrosos. Sem às devidas mensurações, tudo isso aumenta a temperatura dos sentimentos e as pessoas nutrem, em meio ao caos e tensão da pandemia, a sensação de que precisam ser úteis, precisam produzir, entregar, mostrar para os outros que a sua vida não parou e que ela está aproveitando-a normalmente com o mínimo de prejuízo. Sem perceber, retroalimentam o sentimento de competição e frustração em si e nos outros.

entregas e melhores performance a que custo? | foto: pixabay 

Conselho simplista 01 para ser ignorado: 
“Enquanto o meu concorrente dorme ou descansa, estudo, entrego e saio na frente”

Precisamos voltar ao básico, isto é, ao bom senso. Se consegue fazer atividade física, aprender três novos idiomas, se autoconhecer em umas semanas, ótimo. Não tem problema. Mas vá com muita calma ao transmitir isso. Nem todos precisam, querem e podem desenvolver o mesmo feito e no mesmo ritmo que você. E há de se atentar também para algumas destas sugestões. Elas me fazem questionar sobre a real responsabilidade que essas pessoas têm com a saúde mental alheia. A própria sugestão de 'aproveitar para se conhecer’ presume desconhecimento e simplismo. Imagine, passar vários anos com a própria companhia e ainda assim não se conhecer, mas, de repente, ao ouvir o conselho mágico dos coaches de conveniência, se descobre um ser humano como nunca antes percebido. Menos. Os nossos processos mentais e sociais não são instantâneos e quando vejo essa aceleração por fazer coisas, entregar, mostrar, só reforça o quão deteriorada está a saúde mental coletiva e do quão entregue aos achismos e crenças simplistas as pessoas estão.

E digo mais: é essa ânsia de mostrar, produzir e entregar que nos coloca em situações de risco como a da pandemia que vivemos agora. Nós, que nunca somos bem vistos ao parar e que quase sempre estamos nos comparando com a norma institucionalizada e com o outro, subestimamos lá atrás a própria doença. Quantas e quantas vezes fizemos isso sem perceber? Ah, é só uma gripe, posso ir ao trabalho normalmente. Ah, é só uma dor de cabeça chata, posso continuar. Em suma, sempre movidos pela ânsia de entregar, entregamos tudo: até a nossa própria vida

você contra você, quem ganha? | foto: pixabay

E cá estamos outra vez reproduzindo esse modo de viver em um período em que as pessoas estão receosas, vivendo algo que nunca viveram, tendo que simular normalidade e ampliar ou manter produtividade para não se sentirem ainda piores e manterem seus cargos claramente ameaçados. Percebem onde estamos? Porque parece assustador... As ditas pessoas que dão conselhos e são exemplos para os outros precisam considerar as questões internas de cada um antes de saírem por aí ocupando lugares de fala que não são seus. Que fique claro: não estou condenando as atividades e produtividade nesse período não, longe disso, estou apenas pondo em questão que é preciso ter cuidado e responsabilidade com a real saúde mental, frente a esse discurso de entrega típico do sistema capitalista. E saúde mental está anos luz dos ditos posts simplistas que só estão preocupados com os likes e com a monetização. Eles pouco acrescentam e confortam as pessoas no que diz respeito às angustias.

Responsabilidade com o outro e empatia. 

Administre seu tempo como se sentir à vontade e bem para. Tudo bem se o home office não render tanto, tudo bem se não conseguir terminar o curso online ou não conseguir fazer yoga e musculação. Olhe para si com mais cuidado, respeito e tente apenas ficar bem do seu jeito, sem imposições ou regras. Não se compare ou se balize pela experiência do outro. No final, todos torcemos para que tudo isso passe e que saiamos mais fortes e melhores do que antes. Precisaremos de muita energia e saúde mental para construir esse novo mundo que carecerá de novos enfrentamentos para experiências mais justas e harmônicas com o nosso interior e meio ambiente. 

cansada de se sabotar, né minha filha? | foto: reprodução

Esqueça o discurso vazio e encantador que transborda nas redes sociais e se respeite. Nós precisamos disso: respeito e empatia. Não nos são úteis os caça-likes e a popularidade forjada que põe em risco o equilíbrio e bem-estar dos outros. Tudo se resume a responsabilidade e empatia, percebe? Mas será que elas ainda nos faltam nesse século e em meio a uma pandemia?

EM ALTA...