A entrega do 303
| foto: pixabay |
- Alô? É da casa da dona Marta da Silva Borges, do apartamento 303?
- Mas que diabos! Essa porcaria de interfone toca toda hora. Sim, é ela. Quem é?
- É o Alex, o entregador da Loja ‘Preço bem bom’. Estou aqui com o seu pedido, senhora.
- Ah, pode deixar aí embaixo mesmo, em qualquer cantinho da portaria, ou com seu Zé, o porteiro.
- Senhora, preciso que alguém assine o protocolo.
- Proto o quê? Mas ué, não tem porteiro aí? Cadê seu Zé? Na minha época tinha...
- A senhora deve saber que não, não? Seu porteiro é eletrônico.
- Poxa... as pessoas mudam tudo e nem me avisam.
- Estou aguardando…
- Como que eu posso dizer… então… é... não vou poder ir agora. Tá certo, meu filho?
- Por que? O que houve? Posso lhe ajudar?
- É... preciso lhe falar uma coisa. É Alex seu nome, não é, meu filho?
- Sim. Estou te ouvindo...
- Alex, eu sou antissocial. Tenho pavor de gente, não suporto. Não saio de casa para nada, só para extremas necessidades e só encontro pessoas que conheço.
- Eu entendo, senhora. Mas meu trabalho é lhe entregar o seu pacote. Caso não possa vir assinar, terei que levar de volta. Não tem ninguém aí na sua casa que possa vir aqui? Cinco minutinho ou menos. Me ajude que eu te ajudo...
- Ter, tem. Mas aqui em casa somos todos antissociais. A última vez que recebemos uma pessoa acabamos brigando com ela. Meu marido é bem cabeça quente e quase meteu a mão na cara da criatura, sabe?
Marta faz uma pausa, enquanto Alex desbloqueia a tela do celular apreensivo para ver quantas entregas ainda fará no dia. Subiu mais uma notificação do cartão de crédito, lhe lembrando do atraso da fatura. Nesse intervalo, a mulher do 303 continua:
- Foi uma coisa horrível, meu filho. Tanto palavrão e nome feio. Tá repreendido!
- Eu entendo, dona Márcia. Juro que entendo. Mas não é possível que ninguém possa vir aqui assinar esse protocolo. Você não tem vizinhos?
- É Marta, Alex. Márcia deve ser alguém que você conhece e não vê. Me respeita! Mas tá, eu tenho sim. Mas a Telma é uma cretina, egoísta e alma suja! Só pensa nela. A filha, fuma o dia todo e parece um cinzeiro, além disso vive me xingando e procurando problemas. Briguei com elas no último mês e não acho que ela faria isso por mim. Tem também a Denise. Mas ela tem um cachorro chato, pulguento, suja tudo. Cansei de falar para àquela criatura deixar tudo limpo e cuidar do pobre animal, mas não adianta. Ela me xingou, e eu não deixei barato, né? Sentei palavrões naquela ordinária. Tem também o Seu Pedro. Ele é ótimo. Um homem fino, gentil, um cavalheiro. Mas ele não pode sair de casa, porque também é meio idoso já. Acho que não tem ninguém que pode me ajudar, ninguém me vê aqui, meu filho. Nos outros andares só tem uma garotada chata que fica com a cara nesse diabo desse telefone que cada dia fica mais comprido.
- Oh, dona Marta. Eu vou ter que levar seu produto de volta. Sinto muito. Não estou autorizado a entrar no seu prédio.
- Não, Alex, espera aí! É o liquidificador que eu pedi?
- Não sei, senhora. Não estou autorizado a abrir o pacote. Mas é uma caixa grandinha. Capaz de ser algo um pouco maior mesmo. – diz o entregador com um sorriso de alívio, imaginando que reconhecer a compra poderia fazer a senhora vir até a portaria retirá-la.
- Faz um favor, Alex, abre aí para mim?
- Não posso, senhora. Abrir sua caixa poderia me levar a perder o emprego.
- Mas e daí? Arruma outro. Você está feliz como entregador? Eu estou vendo aqui que você não anda feliz e tem muita gente atrás de você. Cheio de dívidas!
- Desculpe ser direto, mas minha vida pessoal não lhe diz respeito. Vou te dar só mais três minutos para descer e vir assinar o protocolo e retirar o pacote. Se não aparecer, vou embora.
- O que custa deixar esse pacote aí e me deixar feliz? Eu sou só uma mulher solitária e sem esperanças de voltar a viver...
- Senhora, pela milésima vez, eu não posso! Eu preciso que alguém assine o protocolo!
- Se é por isso, pede para alguém aí na rua. MEU SENHOR, EU SOU ANTISSOCIAL, EU TENHO MEDO DE GENTE, RESPEITA! NÃO POSSO VER E NINGUÉM PODE ME VER. VOCÊ NÃO ENTENDE?
- Isso não é possível. E se der algum problema? Como que fica para você e para mim?
- Ah, vá te catar! Deixa essa m***a aí de uma vez. Já nem estou querendo essa porcaria. Vá para *&¨%$#$%¨&*(!
- Nem vem! Foi a senhora que comprou, meu trabalho é só entregar. E acabou minha paciência!
Próximo do portão se aproxima uma das moradoras do prédio. Alex se afasta do interfone e aborda a moradora na calçada.
- Com licença, senhora.
- Sim.
- É moradora?
- Aham.
- Poderia me dizer se tem alguém no andar da dona Marta da Silva Borges, do 303, que possa receber esse pacote? A senhora a conhece?
- Dona Marta? A que diz que todos na casa dela são antissociais?
- Ela mesma. Você pode me ajudar? Tem meia hora que tento deixar essa entrega para ela e não vem ninguém. Preciso que assinem o protocolo.
- Rapaz... essa história de antissocial era uma grande mentira. Ela era brincalhona e usava isso para zoar com a cara das pessoas. A gente criticava muito isso nela, porque não se pode brincar com quem realmente tem traços de antissociabilidade, né? Enfim, acabaram até denunciando ela por causa disso. Mas não deu em muita coisa, só mais confusão.
- Então ela estava me enganando esse tempo inteiro? Não entendo... é algo para ela mesma, ela comprou. Eu, hein?
O entregador olha para o pacote e incrédulo que perdera seu tempo com tentativas frustradas. Passaram-se 99 minutos e a próxima entrega estava para acontecer há 33 minutos. A moradora continuou a conversa:
- Em outros tempos tínhamos o seu Zé, o porteiro, que fazia uns favores para ela. Mas ele foi demitido há pouco tempo e agora estamos com a portaria eletrônica. Sabe como é, né? A maioria aqui é da minha idade e só tínhamos ele aqui por causa da dona Marta.
- Ei, por que você está falando dela no passado? Aconteceu alguma coisa?
- Na realidade, estou curiosa. Não como você disse que está falando com ela. O apartamento dela está vazio e a venda. Toda a família dela se mudou porque ela morreu faz uns quatro ou cinco meses.
- Ah, pode deixar aí embaixo mesmo, em qualquer cantinho da portaria, ou com seu Zé, o porteiro.
- Senhora, preciso que alguém assine o protocolo.
- Proto o quê? Mas ué, não tem porteiro aí? Cadê seu Zé? Na minha época tinha...
- A senhora deve saber que não, não? Seu porteiro é eletrônico.
- Poxa... as pessoas mudam tudo e nem me avisam.
- Estou aguardando…
- Como que eu posso dizer… então… é... não vou poder ir agora. Tá certo, meu filho?
- Por que? O que houve? Posso lhe ajudar?
- É... preciso lhe falar uma coisa. É Alex seu nome, não é, meu filho?
- Sim. Estou te ouvindo...
- Alex, eu sou antissocial. Tenho pavor de gente, não suporto. Não saio de casa para nada, só para extremas necessidades e só encontro pessoas que conheço.
- Eu entendo, senhora. Mas meu trabalho é lhe entregar o seu pacote. Caso não possa vir assinar, terei que levar de volta. Não tem ninguém aí na sua casa que possa vir aqui? Cinco minutinho ou menos. Me ajude que eu te ajudo...
- Ter, tem. Mas aqui em casa somos todos antissociais. A última vez que recebemos uma pessoa acabamos brigando com ela. Meu marido é bem cabeça quente e quase meteu a mão na cara da criatura, sabe?
Marta faz uma pausa, enquanto Alex desbloqueia a tela do celular apreensivo para ver quantas entregas ainda fará no dia. Subiu mais uma notificação do cartão de crédito, lhe lembrando do atraso da fatura. Nesse intervalo, a mulher do 303 continua:
- Foi uma coisa horrível, meu filho. Tanto palavrão e nome feio. Tá repreendido!
- Eu entendo, dona Márcia. Juro que entendo. Mas não é possível que ninguém possa vir aqui assinar esse protocolo. Você não tem vizinhos?
- É Marta, Alex. Márcia deve ser alguém que você conhece e não vê. Me respeita! Mas tá, eu tenho sim. Mas a Telma é uma cretina, egoísta e alma suja! Só pensa nela. A filha, fuma o dia todo e parece um cinzeiro, além disso vive me xingando e procurando problemas. Briguei com elas no último mês e não acho que ela faria isso por mim. Tem também a Denise. Mas ela tem um cachorro chato, pulguento, suja tudo. Cansei de falar para àquela criatura deixar tudo limpo e cuidar do pobre animal, mas não adianta. Ela me xingou, e eu não deixei barato, né? Sentei palavrões naquela ordinária. Tem também o Seu Pedro. Ele é ótimo. Um homem fino, gentil, um cavalheiro. Mas ele não pode sair de casa, porque também é meio idoso já. Acho que não tem ninguém que pode me ajudar, ninguém me vê aqui, meu filho. Nos outros andares só tem uma garotada chata que fica com a cara nesse diabo desse telefone que cada dia fica mais comprido.
- Oh, dona Marta. Eu vou ter que levar seu produto de volta. Sinto muito. Não estou autorizado a entrar no seu prédio.
- Não, Alex, espera aí! É o liquidificador que eu pedi?
- Não sei, senhora. Não estou autorizado a abrir o pacote. Mas é uma caixa grandinha. Capaz de ser algo um pouco maior mesmo. – diz o entregador com um sorriso de alívio, imaginando que reconhecer a compra poderia fazer a senhora vir até a portaria retirá-la.
- Faz um favor, Alex, abre aí para mim?
- Não posso, senhora. Abrir sua caixa poderia me levar a perder o emprego.
- Mas e daí? Arruma outro. Você está feliz como entregador? Eu estou vendo aqui que você não anda feliz e tem muita gente atrás de você. Cheio de dívidas!
- Desculpe ser direto, mas minha vida pessoal não lhe diz respeito. Vou te dar só mais três minutos para descer e vir assinar o protocolo e retirar o pacote. Se não aparecer, vou embora.
- O que custa deixar esse pacote aí e me deixar feliz? Eu sou só uma mulher solitária e sem esperanças de voltar a viver...
- Senhora, pela milésima vez, eu não posso! Eu preciso que alguém assine o protocolo!
- Se é por isso, pede para alguém aí na rua. MEU SENHOR, EU SOU ANTISSOCIAL, EU TENHO MEDO DE GENTE, RESPEITA! NÃO POSSO VER E NINGUÉM PODE ME VER. VOCÊ NÃO ENTENDE?
- Isso não é possível. E se der algum problema? Como que fica para você e para mim?
- Ah, vá te catar! Deixa essa m***a aí de uma vez. Já nem estou querendo essa porcaria. Vá para *&¨%$#$%¨&*(!
- Nem vem! Foi a senhora que comprou, meu trabalho é só entregar. E acabou minha paciência!
Próximo do portão se aproxima uma das moradoras do prédio. Alex se afasta do interfone e aborda a moradora na calçada.
- Com licença, senhora.
- Sim.
- É moradora?
- Aham.
- Poderia me dizer se tem alguém no andar da dona Marta da Silva Borges, do 303, que possa receber esse pacote? A senhora a conhece?
- Dona Marta? A que diz que todos na casa dela são antissociais?
- Ela mesma. Você pode me ajudar? Tem meia hora que tento deixar essa entrega para ela e não vem ninguém. Preciso que assinem o protocolo.
- Rapaz... essa história de antissocial era uma grande mentira. Ela era brincalhona e usava isso para zoar com a cara das pessoas. A gente criticava muito isso nela, porque não se pode brincar com quem realmente tem traços de antissociabilidade, né? Enfim, acabaram até denunciando ela por causa disso. Mas não deu em muita coisa, só mais confusão.
- Então ela estava me enganando esse tempo inteiro? Não entendo... é algo para ela mesma, ela comprou. Eu, hein?
O entregador olha para o pacote e incrédulo que perdera seu tempo com tentativas frustradas. Passaram-se 99 minutos e a próxima entrega estava para acontecer há 33 minutos. A moradora continuou a conversa:
- Em outros tempos tínhamos o seu Zé, o porteiro, que fazia uns favores para ela. Mas ele foi demitido há pouco tempo e agora estamos com a portaria eletrônica. Sabe como é, né? A maioria aqui é da minha idade e só tínhamos ele aqui por causa da dona Marta.
- Ei, por que você está falando dela no passado? Aconteceu alguma coisa?
- Na realidade, estou curiosa. Não como você disse que está falando com ela. O apartamento dela está vazio e a venda. Toda a família dela se mudou porque ela morreu faz uns quatro ou cinco meses.
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