O som das portas
Dora pouco entendia o mundo, quando o vento forte assanhou os seus
cabelos e a assombrou. Os seus livros conversavam entre si, com páginas movidas
pelo vento, numa espécie de pêndulo temporal. Pra lá e pra cá, folhas corriam
velozmente. Ao mesmo tempo, suas fotografias e páginas do diário eram
espalhadas por todas as direções. Estava em um redemoinho. A corrente de ar
puxou o seu corpo para frente, enquanto ouvia o som forte do estralo: suas
costas foram atingidas por algo denso e resistente, vindo de uma porta que
havia sido fechada com força e de surpresa. Ouvir e sentir o fenômeno a fez
tremer por dias. Não entendia a força de tudo, mas sentia as consequências se
tornarem mais sólidas, quando conseguia ler mais o mundo.
Àquela foi apenas a primeira porta. A primeira fechada é a que deixa
marcas e oferece o caminho para outras. Mas Dora não entendeu isso e nem lia as
notas de rodapé das páginas abstratas. Ninguém havia te explicado. O susto trouxe
a insegurança e o medo. Restou à reação instintiva para se defender. Temeu
portas fechando para si, voltando a ferir. Erguer muros e a instalar portas foi
à solução mais rápida. Portas altas e largas: as suas próprias portas. Ao por
cada uma, teria o controle do que entra e sai. Estaria segura e não teria
surpresas.
Assim ergueu uma, duas, três. Quanto mais portas, mais controle. Mais se
consolidava a sensação de segurança. As inúmeras portas formaram uma espécie de
corredor, que facilmente se confundia com uma estrada. Por esse caminho alcançou
os lugares mais fundos. Chegou à zona pouco habitada. Lugares onde ninguém
imaginaria chegar.
No começo tudo parecia excitante. Um mundo interno controlado e protegido
reservava descobertas interessantes. Quanto mais desvendava detalhes deste
universo, mais sentia tudo sob controle. Ao mesmo tempo sentia-se asfixiada com
o próprio ar. A fenda deixada sempre na última porta não era suficiente para
trazer o ar novo, para então renovar os seus pulmões. Dora começou a sentir
sinais de que estava habitando órbitas tão além do universo visível, que o
mundo não conseguia notá-la. Ela não sabia o que era este mundo atrás de tantas
portas erguidas, fechadas e controladas. De tanto por portas a todo instante,
acostumou-se a conviver em meio às trancas.
Às vezes tinha a sensação de escutar algo ou alguém bater nas portas. Mas
sempre esperava mais sinais de continuidade, para que ela pudesse oferecer algo
de outra ainda mais rodeada de fechaduras. Perdeu a conta de quantas vezes
bateram em sua porta e não abriu por temer o vento fechá-la com força novamente,
lhe causando pânico e dor. Ela temia que o vento espalhasse o que estava
alinhado, obrigando-a a pensar numa nova ordem. Preferiu a solidão à
possibilidade de sair dela.
Dora tinha um molho de chaves enormes, mas que agora eram inúteis, porque
não podia controlar nenhuma das portas. Eram muitas. Centenas. Uma para cada
dia do ano, uma para cada desconhecido. Agora já estava na casa dos 40 anos e
como estava trancada em portas que só ela tinha a chave, mas não ousava abrir, o
tempo lhe parecia no mínimo o dobro. Sentia-se com 80 anos. No fim da vida. Já
fazia planos para o descanso eterno. Prometeram-lhe o paraíso e a promessa era
tudo que tinha.
O cansaço agarrava suas pernas e ela pouco podia explorar. Seu corpo
ainda era saudável, os conflitos estavam além. Estavam no seu próprio espírito.
Mais tempo passou, mais consequências e portas adicionadas. Por vários momentos
pensou como seria se alguém arrombasse todas essas portas e a resgatasse de si
mesma. Mas esse alguém teria de protegê-la, porque o pânico pelo susto ainda
era visível. Ninguém jamais poderia fazer isso. Sequer sabiam das muralhas
erguidas, exceto àqueles que persistiam.
Fora das portas tudo parecia normal, tinha sucesso na carreira seguida.
Assim como tudo que tocava. Diferentemente de tudo que sentia. Havia tantas
portas que se iludiu com a possibilidade de não ser mais humana. A segurança e
o controle do imprevisto lhe davam esta sensação. Era o poder ilusório do lugar
de criadora e não mais de uma criatura.
Dora pouco relaxava, pouco deixava de lado o seu racional. Sempre buscava
o controle e a justificativa. Milimetricamente disponibilizava para os outros,
apenas o julgado necessário para entrar em seu universo. Ela já pressuponha que
tudo era passageiro, e que por isso, o pouco já satisfazia aos forasteiros.
Sempre havia portas fechadas. O conteúdo delas era essencial para transitar e
formar vínculos. Como o mantinha sob chaves, poucos conseguiam entrar. Mas paradoxalmente
resmungava da própria proteção.
II
O cansaço dava mais sinais e o seu corpo começara a reclamar. Dora dormiu.
A consciência saiu do seu corpo por 12 longas horas. Passou a mão no seu rosto
e despertou. Olhou para um ponto qualquer e notou a companhia. A sua
consciência retornou e ela não parecia feliz com a presença. O seu desejo
inocente era de que ela continuasse em suspensão por algum tempo, mas não tinha
chances de contê-la. A consciência vinha acompanhada da percepção da solidão,
por isso doía.
Agora um redemoinho de palavras e vozes circula em sua mente. Não há nada
que possa fazer para controlar. Não podia afastar a consciência do corpo,
porque ela ainda é meio para o vital.
Não havia nada de errado com o seu corpo e nem com a sua mente.
Fisicamente tudo era perfeito. Mas há algo além da sua carne que parece fazer
jus a ansiedade e temor pela consciência: àquele som do estralo ainda estava
vivo.
Imagens começam a se agrupar a palavras e vozes do redemoinho. Tudo
começa a ganhar mais forma e vida. É assustador. Ela não consegue parar o
redemoinho. Se sente esperançosa ao desejar o sono novamente. Só ele consegue
suspendê-la e retirá-la do seu corpo. Mas nada é tão fácil e a rotina exigia
que ela dormisse cada vez menos.
O dia estava começando novamente. Mais um dia. Mais várias possibilidades
ou mais um dia de repetições cansáveis e tediosas? Ela alimentava a crença do
poder de escolha do que estava até então aprisionado. Mas nada estava sob seu
controle o tempo inteiro.
Dora até que era esforçada. Fazia de tudo para mergulhar nas
possibilidades, na experimentação do novo e do bom. No entanto, parecia haver
algo maior segurando suas pernas impedindo o caminhar. Eram as portas que a
mantinha numa bolha isolada de tudo e todos. Gritou para mente:
– Que tudo pare, estou segura! Estou sozinha! – o eco nem se interessou
em parecer perceptível, não lembrou a descarga elétrica no seu peito jogada ao
ar. O efeito era nulo. Seu esforço até então era insatisfatório, ainda que
achasse o contrário.
Havia algo de errado ou estava tudo normal? Controle. Não era isso que desejava? Dora estava atrás de respostas
claras, mas nada obtivera. Continuava refém da própria consciência, refém da
muralha de portas que ergueu até hoje.
O redemoinho ora se intensificava, ora se desmanchava. Dora fazia o
possível para manter o equilíbrio, quando tudo parecia desmontar. Não parecia
feliz quando mergulhava ou era jogada aos redemoinhos. Lá não era escuro, ao
contrário, era tudo muito claro, mas o excesso tornava tudo impossível de ler.
Imagens, sons, sensações. Era tudo que tinha. Dora não parecia feliz com a companhia
da própria consciência, porque ela parecia querer destruí-la.
III
Foi vencida pelo sono mais uma vez. O
sono agora foi curto. Cochilou por apenas 30 minutos, suficientes para fazê-la
despertar em meio a um oceano de chaves, que espetavam o seu corpo. Sinais físicos. Algumas já estavam
enferrujadas.
Ouviu batidas na porta. Seria a hora de colocar mais uma porta e abrir um
feixe da última? Pela primeira vez percebeu que as fechaduras estavam tão
gastas e enferrujadas, que encontrar a chave certa demoraria anos. Poderia
morrer nadando em chaves, tentando encontrar uma, sem garantia alguma de
liberdade.
O corpo a impulsionou a abrir a porta
sem ter de colocar outra, ainda na primeira batida. Usava toda a força que
restou. À medida que o som da batida se intensificava, derrubava mais uma. Mais
uma. Várias. Quando chegou a última porta, a primeira de todas, a batida
cessou. Revoltou-se com o rompimento. Olhou para o corredor de escombros. Os
seus olhos não conseguiam encontrar a última porta fechada e arrombada. Era
profundo. O caminho que percorrera até a saída era mais fundo do que a sua
sensação de isolamento a deixava perceber.
Deslizou na madeira da primeira porta, sentou e suspirou. Seu suor
misturou-se a madeira. Estava exausta. Mas agora as batidas cessaram. Alguém parou de bater. Estava sozinha
novamente? Logo agora que estava incentivada a abandonar o temor? Agora que
chegou perto de abrir a primeira porta? A porta da permissão para o novo, o
imprevisto, o desconhecido, a saída ignorada durante a vida?
De repente, essas possibilidades transmitiram cheiro. Era o ar novo ansioso
querendo entrar por baixo da porta, pelo buraco da fechadura. Era o ar que os
seus pulmões tão secos precisavam. Eles entravam por qualquer fissura.
Ouviu mais uma vez batidas fortes, e esta foi à motivação para arrombar a
última porta. O longo estralo de queda da madeira permitiu sentir a corrente do
vento externo enlaçando o seu corpo. Encarou o horizonte, tudo estava vazio.
Não havia ninguém do outro lado da porta. Ainda estava sozinha.
Dora continuava a ouvir as batidas. Sentou-se no
gramado e a vista pareceu excitante. A sombra da luz estava tão tênue que mais
parecia terra molhada. Pela primeira vez conseguia ver algo com o seu coração e
sem medo. Tudo parecia renovado e ela não temia o vento que fechou a primeira
porta. Acreditava não temer mais nada. Estava sedenta por esse novo. Esticou o
corpo no chão, em meio ao gramado que se confundia com terra molhada.
Quando pôs as mãos no peito para descansar, ouviu
novamente o som que havia motivado o arrombamento de todas essas portas. Sorriu
como se tivesse novamente 10 anos. E realmente tinha. Ela acordara. Passou as
mãos nos olhos e na cabeça, em meio ao riso espontâneo.
*Conto do mês