Ninguém (Parte I)




I

A lataria do carro se revira pelo asfalto e meu corpo é um mero pedaço de coisa que gira inconscientemente. Vejo imagens turvas em minha mente num lapso temporal diferente de tudo que já vivi. São fragmentos dos objetos do carro, agora espalhados diante dos meus olhos, ou são lembranças felizes de um dia que já não lembrava? Os segundos que pareceram estranhos minutos me impulsionaram a perceber a presença do vazio que me acompanha durante toda uma vida, até mesmo em um momento como esse em que pareço estar deixando ela.
No asfalto, a lataria finalmente cessa a tal coreografia que me deixou girando. Vejo a fumaça, os estilhaços e sou puro sangue. Não consigo distinguir se estou no meu corpo ou se estou fora dele. Tudo parece turvo e eu não sei como agir. Estou de cabeça para baixo, minhas pernas presas nas ferragens que havia me custado milhares de dólares. Sou homem ou máquina? Gostaria de ser uma máquina ou homem? Em meio ao desespero, procuro insanamente o meu telefone. Eu não sabia se havia risco de incêndio ou explosão, mas a possibilidade de estar diante dos meus últimos segundos de vida trouxe o meu desejo final, que era de ouvir você.

Frustrei-me. A tentativa de me mover é inútil, sobretudo quando o airbag está acionado. Aguardo com paciência que alguém chame ajuda. Mas alguém chamaria? Há um lado sádico nas pessoas que assistem os desastres, elas ficam sempre esperando o último momento decisivo antes de tomar uma atitude ou chegar a uma conclusão. Sempre esperando, sempre esperando. Enquanto isso, tento acalmar o desejo de ouvir você outra vez. Quando foi mesmo a última vez que te abracei? Espera um instante, nós terminamos. Havia algum tempo que não nos falávamos. Prometi não te procurar. Deixei à busca a seu cargo, porque esperava que fosse fazer isso. Pelo visto foi um ledo engano. Só eu sentia saudades nessa relação? Parece que sim, no fundo sentia um pouco de raiva e ciúmes por minha saudade e amor não serem correspondidos. Mas agora, diante da morte, não me importo com o orgulho em quebrar uma promessa. Poderia ser os meus últimos segundos de vida, quem se importaria com um juramento tolo que fizemos?
Sou sangue, suor e ferragens. Percebo sirenes ampliando gradativamente o seu som. Ouço conversas, mas não consigo decodificar nenhuma palavra, vejo tudo ainda girando e os meus olhos fecham sem eu perceber que estou perdendo a consciência e talvez deixando o meu corpo. Os sons se abafam, as luzes se apagam, minha respiração diminui. De repente, não penso em nada, não vejo nada e não sinto nada. Meu corpo vai se tornando cada vez mais pesado e o meu controle evapora. ∞     









EM ALTA...