Gosto amargo da adaptação






Do outro lado da rua asfaltada, atrás duma grade, a tragada de ar não foi suficiente para dispersar o gosto amargo da constatação. Mais do que qualquer ideia de amargo, era a própria experiência, em sua totalidade de sensações e sentidos, mostrando-se viva e perpétua.
O gosto de não adaptar-se era denso e perverso, sobretudo em um meio de pessoas intituladas adaptáveis, versáteis e a todo um contexto de inversão de responsabilidades, alastrado e imortalizado. Havia cobranças e culpas no ar, tanto que estava atrás de uma grade. 
Mal sabe como e quando começou a semear o gosto da boca. Recordou-se de tudo que se submeteu, diante da máxima de adaptar-se ou morrer. Começou com os R$ 10,00 do ladrão, logo passou para o celular barato, que poderia ser levado sem sentir o prejuízo. O tênis, a camisa e por quê não o espírito, já morto por perder a liberdade?
“Não saio de casa sem pelo menos os R$ 10,00 na bolsa, para o caso do ladrão tentar me assaltar. Posso ser agredida, se não tiver nada para dar”, revela uma moça na casa dos 20 anos. Enquanto segura forte a bolsa, aguardando o ônibus, com espanto, nota, o que entende como descuido no comportamento das pessoas: “olha para ali, elas facilitam demais, pedem para serem roubadas!”. A adaptação ganha expressão, sobretudo com o final de conversas como essa, em que se movem os ombros, e da boca sai um: “Ô, fazer o que né? Tá assim em todo lugar”. O som é espontâneo, quase cantado.

Quem nunca conviveu com a sensação de segurança tende a achar que ela realmente não existe e pouco cobra. A resposta só pode ser à adaptação, porque não há tempo para imaginar ou trabalhar o futuro. Esse ajuste tem alcançado níveis surreais. Da descrença à privacidade – no jeito banal de encarar qualquer exposição em prol de segurança, indo a extremos maiores do que a convivência com câmeras, até em banheiros – ao uso excessivo de métodos para tentar se proteger – indo desde aqueles que colocam o dinheiro e celular nas calças, a sistemas inteligentíssimos de segurança. É só olhar os lados para notar a sofisticação das nossas adaptações a ausência do básico.
Nas esferas das decisões, um joga para o colo do outro. Não se vê tantos movimentos de mudança, mas, novamente, sucessões de adaptações. São números anunciados por autoridades, que mais visa nos confortar de que estão utilizando verba pública em segurança, do que efetivamente a segurança. Invadem a escassa privacidade, em prol duma segurança que nunca chega. Por isso é tão amargo, porque não é fácil livrar-se da sensação de insegurança e da amargura em não ter o mínimo oferecendo tanto.
A pergunta a ser feita é: deve se acostumar com a realidade assustadora e amarga? Programar-se para esperar o assalto (ou o próximo, para quem já foi), ao possível estupro (os últimos dados são alarmantes), a abordagem violenta, à bala perdida? Não se aplica apenas as regiões periféricas das grandes e médias cidades, mas é um sentimento comum e vivenciado por todos os lados, em dias de sol ou de chuva.

Efeito 3D e futuro


            Nas realidades de cidades urbanas, densas e cheias – principalmente com buracos de atuação para todo o lado, herança de um passado histórico marcado pela desigualdade, imediatismo e exploração – não se procura liquidar os problemas, como a falta do básico. Faltam políticas verdadeiramente inclusivas, que já surjam ao menos com o espírito pouco burocrata. As promessas acabam no papel, como o efeito 3D. Elas dão a impressão de saltar para realidade, vivas, livrando-se da burocracia e finalmente resolvendo as carências, mas nada é efetivamente tão real: é um efeito.
Não há como se acostumar com o medo do vulto, da sensação de que está sendo seguido, marcado ou observado. Que realidade é essa que se mostra tão perpétua ao futuro? A impossibilidade de adaptações é mais extensa: não há como se acostumar com a saúde precária, a educação para poucos. Não há como se acostumar com estatísticas difíceis de crer ainda existir.
A um palmo dos olhos, pela janela de casa, você pode visualizar a sua posição no mundo. Sem clichês do discurso dos que querem segurança para exibir os seus produtos –indicando a sua posição nos rankings de consumo– mas nem quem está atrás das grades decoradas e luxuosas, vendo a vida pela varanda, tem o mínimo de segurança. Nem mais nos blindados vidros fumês dos carros médios. Claro que a percepção de insegurança é diferente, mas ela é onipresente. Se um dia a segurança esteve fora das grades, cansou de esperar seu reinado chegar. Deixou o espaço para o infeliz legado da adaptação.  
São os itens selecionados para responder ao roubo –este, que por sua vez é movido por diversos motivos e deficiências de todos os lados– é a grade e cercas elétricas prometendo seguranças aos luxuosos condomínios e casas comuns – junto com os seguranças altos e cheio de músculos.  É o exame que precisa ser feito com urgência, parcelado no cartão de crédito, para tentar prolongar a vida. A fila de espera que não dura dias, nem meses, mas anos. O pré-vestibular, para cobrir lacunas de um ensino de uma vida inteira, que sempre foi precário. O subemprego, entre jovens e adultos, para satisfazer os desejos de consumo – mínimo e máximo – pagar contas e impostos, entre tantas outras adaptações. É a vida que passa, acaba e pouco consegue avançar.
Não existe costume, acomodação ou qualquer coisa do tipo, com o que não deve e nem precisa de continuidade. Se importamos tantas tralhas e traças inúteis para nos mostrar como pessoas civilizadas, para exibirmos inclusive em redes sociais, por quê não importamos ao menos o interesse em manter uma vida presente e futura?
A impressão é a de que não há crença num futuro e nem no presente, por isso tantas adaptações. Essas adaptações são formas de atestar e materializar o conformismo. Investigar, as causas de todas essas questões, parece necessariamente tocar em ferida que ainda arde. Mas se não for diante de um cenário apocalíptico, quando será? Quando esgotar a criatividade e as técnicas de adaptação? Quando elas deixarem de ser rentáveis para alguns?
É amargo, difícil e denso. A vida cheia de precariedades torna tudo mais embaraçoso ao tentar ver um horizonte pelo vidro da janela, ao tentar ler e observar o mundo. Abre-se o jornal, a revista, liga-se a TV. Vê-se o mundo entre as grades seguras, com a insegurança. Se a adaptação é o que tem para o futuro, que fim terá o trago do amargo? 


*Aos meus amigos, leitores: boas festas e que o próximo ano nos traga o que há de melhor.

Comentários

  1. Oi Vinicius
    Nossa que belo texto! Mas não é de se admirar! Vc sempre escreve com paixão, e seus textos refletem o cotidiando, são verdadeiros e profundos! Simplesmente adorei!
    Que vc tenha um ótimo natal, e seu 2014 seja sempre abençoado!
    Bjos.

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Bem-vind@ a Ótica Cotidiana!
Obrigado pela visita e leitura do texto.


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